
Numa outra vida talvez. Quem sabe? Quem pode garantir que as tramas do destino não nos põe novamente nesta encruzilhada de sensações? Numa outra vida, talvez.
Ainda me lembro. Sorrisos de lágrimas nos olhos, corações acelerados, planos para um amanhã que nunca existiu. Foi essa a sombra do passado que se projectou para o presente e me impediu de seguir. Mas está tudo bem. Numa outra vida, talvez possamos ser novamente o que já fomos. Numa outra vida, talvez possamos vencer as manobras do destino.
Pousando as mãos sobre a plataforma gélida do meu corpo, descubro que me despi. Não só de roupas ou de medos, mas de sensações e de desejos. Respiro e não estou viva. Sou a incoerência desses vultos apagados que vagueiam avenidas perseguindo sonhos que nunca poderiam ser reais. Sou o espectro meio morto que aprendeu a fingir um "está tudo bem" de percurso e a engolir as lágrimas. O coração afogou-se nelas. Mas é a vida, não é? Numa próxima, talvez possa ser diferente.
E resta-me a aceitação. A aceitação muda. A aceitação calada. A aceitação de que esta vida já foi e já não é. E, não sendo, não terá mais nada para mim. A aceitação de que todos os meus passos foram fragmentos de caminho traçado na direcção do abismo. A aceitação do abismo e da queda e da morte.
Numa outra vida talvez. Talvez sorria. Sorrisos de alma. Talvez ame doentiamente e seja amada de igual forma, para que não digam mal do meu amor. Talvez encontre paz. Mas será numa outra vida porque esta está despojada de esperança e de sonhos. Porque esta não terá um amanhã. Já não tenho dias que sucedam às noites mas tão só a escuridão perpétua da minha alma a cegar-me os olhos e a impedir-me de ver toda a beleza que restou, se é que restou.
Não me desiludo mais. Despi também as ilusões. Sou apenas um corpo nu de tudo, deixado ao frio, na esperança de uma morte quente.
Mas, ainda assim, quem sabe? Talvez numa outra vida eu possa ser feliz. Talvez a traição do mundo seja apenas para me ensinar a receber melhor essa alegria. Talvez tivesse de conhecer o abismo antes de conhecer um chão mais quente e melhor.
Numa outra vida talvez. Vou agarrar-me a essa esperança durante a queda. Porque quero morrer a sorrir. Quero morrer como não vivi. Quero morrer humana para não ser esse monstro que tantas vezes me acusaram de ser. Por isso, numa outra vida talvez haja espaço para mim e para o que eu quero e para o que eu sinto. Talvez a minha próxima vida não esteja gasta e rota, vazia e gélida. Talvez uma outra vida possa ser chamada de vida.
Numa outra vida talvez. Ninguém tente roubar-me as minhas derradeiras ilusões! Vou fechar os olhos para esta. E numa outra.... ah, essa vida! Numa outra vida ainda vou provar a verdade de cada conto de fadas!
Marina Ferraz
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet