terça-feira, 13 de março de 2012

Numa outra vida


Numa outra vida talvez. Quem sabe? Quem pode garantir que as tramas do destino não nos põe novamente nesta encruzilhada de sensações? Numa outra vida, talvez.
Ainda me lembro. Sorrisos de lágrimas nos olhos, corações acelerados, planos para um amanhã que nunca existiu. Foi essa a sombra do passado que se projectou para o presente e me impediu de seguir. Mas está tudo bem. Numa outra vida, talvez possamos ser novamente o que já fomos. Numa outra vida, talvez possamos vencer as manobras do destino.
Pousando as mãos sobre a plataforma gélida do meu corpo, descubro que me despi. Não só de roupas ou de medos, mas de sensações e de desejos. Respiro e não estou viva. Sou a incoerência desses vultos apagados que vagueiam avenidas perseguindo sonhos que nunca poderiam ser reais. Sou o espectro meio morto que aprendeu a fingir um "está tudo bem" de percurso e a engolir as lágrimas. O coração afogou-se nelas. Mas é a vida, não é? Numa próxima, talvez possa ser diferente.
E resta-me a aceitação. A aceitação muda. A aceitação calada. A aceitação de que esta vida já foi e já não é. E, não sendo, não terá mais nada para mim. A aceitação de que todos os meus passos foram fragmentos de caminho traçado na direcção do abismo. A aceitação do abismo e da queda e da morte.
Numa outra vida talvez. Talvez sorria. Sorrisos de alma. Talvez ame doentiamente e seja amada de igual forma, para que não digam mal do meu amor. Talvez encontre paz. Mas será numa outra vida porque esta está despojada de esperança e de sonhos. Porque esta não terá um amanhã. Já não tenho dias que sucedam às noites mas tão só a escuridão perpétua da minha alma a cegar-me os olhos e a impedir-me de ver toda a beleza que restou, se é que restou.
Não me desiludo mais. Despi também as ilusões. Sou apenas um corpo nu de tudo, deixado ao frio, na esperança de uma morte quente.
Mas, ainda assim, quem sabe? Talvez numa outra vida eu possa ser feliz. Talvez a traição do mundo seja apenas para me ensinar a receber melhor essa alegria. Talvez tivesse de conhecer o abismo antes de conhecer um chão mais quente e melhor.
Numa outra vida talvez. Vou agarrar-me a essa esperança durante a queda. Porque quero morrer a sorrir. Quero morrer como não vivi. Quero morrer humana para não ser esse monstro que tantas vezes me acusaram de ser. Por isso, numa outra vida talvez haja espaço para mim e para o que eu quero e para o que eu sinto. Talvez a minha próxima vida não esteja gasta e rota, vazia e gélida. Talvez uma outra vida possa ser chamada de vida.
Numa outra vida talvez. Ninguém tente roubar-me as minhas derradeiras ilusões! Vou fechar os olhos para esta. E numa outra.... ah, essa vida! Numa outra vida ainda vou provar a verdade de cada conto de fadas!


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 6 de março de 2012

Toque cigano


Estendo-te a mão aberta. A mão aberta e vazia de tudo. Despojada de tanto quanto se pode despojar um ser sem vida. Despojada das certezas. Despida das vontades. Vazia. Vazia como o meu mundo. Estendo-te a mão.
Estendo-ta na esperança de que possas olhar para ela e ler nas suas linhas incertas um futuro que não sei ter. Estendo-ta para que me adivinhes a sorte. Estendo-ta para que, num segundo de efemeridade, possas aliviar-me o espírito e dizer que há algo em mim que vai sobreviver à morte do meu coração e ao negrume da minha alma.
Agarra-me a mão nas tuas. Deixa o teu toque cigano sentir a minha pele. Deixa o teu olhar pagão percorrer as linhas desta mão vazia. Deixa-te saber a sina de uma escrava do destino. Deixa-te saber a sorte de uma meretriz que se verga à vontade fútil de um coração louco.
Na ancestralidade aprendida pelo teu olhar, deixa-te ver o que os outros não vêem. Saber o que os outros não sabem. Conhecer o que é negado a tantos quantos desconhecem o poder de um olhar ou de uma linha vincada na pele.
Agarra esta mão que te estendo. E, por favor, olha para as linhas insensatas que a preenchem. Olha para elas com esse teu olhar negro e cheio de esperança. Olha para elas até as saberes de cor. Olha para elas com o olhar de quem acredita que o mundo pode ser feito de coisas que as outras pessoas ignoram .
Agarra a minha mão nas tuas mãos trigueiras. Diz-me o que está por devir. Diz-me se há no mundo lugar para alguém que já perdeu tudo. Se o mundo se abre para quem perdeu até a vontade de viver. Diz-me o que não me dizem os livros e as explicações. Diz-me o que não dizem as pessoas que não crêem no destino.
Estendo-te a mão. Estendo-ta na esperança de que não a vejas vazia. Estendo-ta no desejo de que não a vejas como eu. Por favor... lê os traços insensatos desta mão. Adivinha-me o caminho ou o desfiladeiro. Adivinha-me a fortuna ou a morte. Adivinha. Seja o que for.
Estendo-te a minha mão vazia. Entrego o meu destino ao teu toque cigano. Possa o teu olhar ver o que não vejo. Possam as tuas palavras dar-me paz... A paz da esperança ou a paz do fim...


Marina Ferraz

* Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Nos sopros da alvorada


Há dias em que a saudade entra, vagabunda, pelas frestas da janela e me acorda com um beijo. E, quando volto a dormir, já não vou só. A dor vem comigo.
É esse o peso das ausências que chegam no sopro da madrugada. O sopro inconstante que envolve e abraça, preenche e incomoda. O sopro que nos lembra que fica apenas o nada depois de tudo porque o próprio mundo se perde por entre as curvas cerradas do desejo de vencer o impossível.
De olhos fechados, vejo-me arrancada de sonhos mais doces, pela vontade de poder tornar reais essas mentiras que a minha alma inventa para me manter viva. E abrir os olhos é somente encontrar a verdade, envolta pelos sentimentos frios que tentei esconder no que há de mais profundo em mim.
A saudade. Esse sopro constante que me arrefece a alma e me gela o coração. Essa vaga de sentidos que me tolhe nas dores mais insensatas. É ela que me visita a cada manhã, por entre a luz morna da alvorada e o fim mal pressentido da escuridão. Luz e trevas. Memória e esquecimento. Desilusão cantada e despida de razões. É tudo isso que me acorda dos meus sonhos e me atira para as paradas de tortura lenta que me moem ao longo de todo o dia.
Mas, inconsciente do mal que causa, é a saudade que me aconchega e é ela que me canta uma canção de embalar para que durma um pouco mais. É ela que se entranha nos meus sonhos e me traz as visões mais belas de tudo o que foi e já não é. E é ela que me sorri quando o sono me toma nos braços e a dor atenua um pouco.
Há dias em que a saudade entra e me beija, me fere. E fico a pensar, entre o sono e a consciência que está tudo bem. Talvez, apesar de tudo, seja essa dor a única capacidade de sentir que me restou. Então, deixo a saudade entrar pelas frestas da janela e abraço-a junto a mim. Para sentir, não importa o quê. E adormecemos as duas na dor mas com um sorriso no rosto porque sabemos que, independentemente de tudo, somos uma da outra, para sempre!


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ajusta as Velas


Ajusta as velas, meu amor. Não podemos mudar o vento. Não podemos escolher um horizonte mais próximo. Não podemos ir contra as marés. Mas podemos ajustar as velas. E agradecer ao vento, fazer uma vénia ao horizonte e respeitar o mar que nos carrega nos braços. Podemos sempre fazer alguma coisa para aproximar a vida do que achamos que a vida deve ser.
O segredo estará sempre nas coisas que podemos mudar. Não vale a pena perder tempo com o impossível. Não vale a pena reclamar das coisas que não nos caíram aos pés. Temos de ajustar as velas e de erguer os punhos e de lutar contra os contratempos de cabeça erguida. Temos de saber quem somos e de respeitar o que há de mais real em nós, mesmo quando mais ninguém o vê. Temos de calar o medo, de lhe cantar uma canção de embalar e de o deixar adormecer, para seguirmos tranquilos mesmo por entre as tempestades.
Sim. Não o nego: há-de haver tempestades. Vai chover torrencialmente e as ondas vão atingir picos incontornáveis. Mas nós vamos recolher as velas e rezar baixinho. Metade, acredita em mim, está na fé. Na fé que temos no futuro. Na fé que temos no presente. Na fé que temos de não precisar do passado para navegar pelos mares da nossa vida.
Ajusta as velas e vem aqui. Olha para este céu e para este mar. Para a terra distante que não passa de um contorno. Olha para este mundo. E sorri. Esse sorriso que me ilumina e me aquece, como se pudesse chamar-se sol.
Não podemos mudar a história. Não podemos desenterrar da areia das profundezas os navios que afundaram. Mas podemos fazer isto. Podemos dar as mãos ao destino. Podemos ajustar-lhe levemente as velas, sem que ele se aperceba. E podemos fazer isto sem lágrimas e sem gritos. Podemos fazer isto com carinho e devoção. Podemos fazer isto com maturidade. Podemos fazer isto com a alma de uma criança que ainda não aprendeu a ser cruel.
Não é culpa do vento nem da maré. Não é culpa da tempestade. Se não atingirmos o porto, a culpa é nossa. Por isso, ajusta as velas. Ajusta-as e deixa que o horizonte, lá no fundo, seja o sonho. Deixa que a alma, cá dentro, seja a bússola. Somos os capitães da nossa vida e os senhores da nossa liberdade. Ajusta as velas. Vamos traçar a rota. Podemos ir onde quisermos. Nenhum vento é mais forte do que a vontade de um coração.


Marina Ferraz

* Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Máscara




Vá lá, por favor, só por hoje... tira a máscara. Não precisas de ser forte a tempo inteiro. Tira a máscara e chora as tuas lágrimas, mostra os teus medos, liberta-te da pressa sôfrega da perfeição. Só por um dia, só enquanto estiveres comigo, tira essa máscara e mostra-me o teu verdadeiro rosto.
Eu entendo! A vida feriu e o mundo pisou. As pessoas foram embora. Ficou o silêncio. Ficou a solidão. Ficou a dor. E tudo o resto desapareceu por entre os desertos da tua vida sem vida. Eu entendo, acredita em mim. Conheço as injustiças. Trato-as todas pelo nome próprio. Todas elas têm a chave para a minha alma. Mas hoje, só hoje, deixa cair a máscara de força, deixa amolecer essa carapaça dura e crua que trazes sempre contigo.
A tua máscara é assim: tem o formato de um sorriso aberto e um brilho de lágrimas nos olhos que ninguém vê. Tem a magia do "está tudo bem" e o oculto da tristeza. E, está descansada, ninguém sabe. Como poderiam? Como poderiam saber que estás de rastos quando caminhas firmemente, passo a passo, como quem desfila em paradas de felicidade? Como poderiam saber que estás quebrada se te mostras inteira e exibes as conquistas, deixando-as qual aroma no ar por onde passas? Como poderiam saber que tens a alma negra de dor, se mostras apenas a luz dos teus desejos, sem dizeres que sabes que todos eles são uma ilusão?
Deixa cair a tua máscara. Tira-a do rosto, só por hoje. Não precisas de ser forte a tempo inteiro. As tuas derrotas podem ser choradas. Os teus medos podem ser sofridos. As tuas desilusões podem ser reveladas. Ninguém devia ter de ser forte o tempo todo. Nem mesmo tu, que assumes as responsabilidades do Mundo e as carregas sobre os ombros!
Vá lá, por favor! Estamos sozinhas, por hoje, tu e eu. Deixa cair essa máscara de força. Deixa cair essa noção de que estás bem. Deixa cair as mentiras que contaste a ti mesma para te convenceres de que podias continuar a avançar, apesar das feridas abertas do teu coração. Só por hoje, deixa-te ser emotiva e tonta. Deixa-te chorar até te arderem os olhos e te doer a cabeça. Deixa-te divagar, gritar, soluçar.
A vida. É incrível como consegue entrar por becos e destruir-se a si mesma, sem pedir opiniões. E mais incrível é o entusiasmo com o qual o mundo aplaude e a forma como as pessoas fogem e se escondem nas suas supostas perfeições quando alguém se deixa cair. Sim, eu sei. A vida feriu-te e tu, tão criança na tua alma velha, tão menina no teu coração magoado, precisaste de uma força que não tinhas. Então, usa essa máscara de força. Mas não hoje. Não agora. Não aqui... Poderás sempre ser apenas tu comigo. Porque mesmo com as tuas lágrimas e a tua dor e o teu sofrimento, eu sei que és forte. Forte o suficiente para te levantares da cama a cada manhã e vestires a tua máscara de força. Forte o suficiente para gritares aos ventos que estás bem, mesmo de coração quebrado, sempre que alguém precisa do teu sorriso.
Vá lá. Por hoje, só por hoje, tira a máscara. Porque eu tenho a certeza que também és forte por entre as lágrimas e o sofrimento e essa mágoa que se entranhou na tua pele e que te corre nas veias, em vez de sangue. E tu também precisas de saber. Precisas de saber que, além da máscara, existe força em ti. Precisas de saber que, venha o que vier, hás-de ficar bem...
Então, tira essa máscara de força. Só por hoje... está bem?


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Ambiguidade


Ficar bem. Ser feliz. Encontrar um caminho. É tão simples! Tão banal como seguir um rumo, como alcançar um objectivo, como andar em frente sem olhar para trás.
De alguma maneira é simples. Simples como o esquecimento que não vem e a distância que não se pede. Simples como tatuar na pele uma nota a indicar que não se quer saber de nada nem de ninguém. Simples. Tão simples. E quem pode alcançar a simplicidade?!
É por isso que acho que pedir a alguém para ficar bem, quando o amor acaba é o mesmo que pedir a um pássaro que voe depois lhe partirem as asas. Sim! Ainda há céu. Ainda pode olhar para o céu. Ainda pode sonhar com o céu. Mas nunca mais fará parte dele. E, de alguma maneira, o céu dos meros mortais de asas e corações partidos é a felicidade... Está ali e existe. Podemos olhá-la, podemos sonhá-la. Mas nunca seremos parte dela... e ela nunca será parte de nós.
Haverá sempre a barreira inevitável da destruição. A destruição da vida que foi sonhada e não foi vivida. A destruição da crença de que se podia tocar na linha imaginária onde se cruza o mar e o céu. A destruição da certeza de que, um dia, tudo vai fazer sentido. E, quando tudo é quebrado pela barreira do adeus, fica somente a incerteza fria de que seja possível acordar sem desejar voltar atrás e morrer num dos momentos em que tivemos a plenitude.
A felicidade? Ela mora bem ali... na distância crua de tudo o que se conhece mas já não pode tocar, a exibir-se à frente dos olhos, numa parada de tortura, como se quisesse ter a certeza de se sofre o suficiente.
Mas solta-se o desejo: "fica bem!", "sê feliz", "encontra um caminho!". Porque ninguém é sincero o suficiente para admitir que "bem" é a distância do improvável, "feliz" é a certeza do impossível e que "um caminho" não significa um caminho mas antes outro caminho. Um caminho diferente do que teria sido desejado. Um caminho meio vazio, meio gasto, meio roubado, meio sofrido... cheio de meios, cheio de metades, completamente incompleto.
São as ambiguidades da vida. As ambiguidades que vêm da dor que nos é causada por tudo o que já nos fez feliz. As ambiguidades de haver infernos nos céus dos nossos desejos. E quantos de nós não somos pássaros de asas partidas, a olhar para o céu da felicidade? Quantos de nós não buscamos a força que não temos para bater as asas, mesmo partidas, numa tentativa de os alcançar, por mais que doa?
As asas quebradas com as quais pintamos as lágrimas também são simples. Tão simples que, quem olha para nós, ainda consegue dizer "fica bem". Tão simples que acabamos por aceitá-las e mentir a nós mesmos dizendo "fui eu que escolhi o chão".
Eis a ambiguidade da dor. Fere tanto que nos torna mais fortes!

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Segredos de um monstro


Vou contar-te um segredo. Deixa-me só fechar a porta e confirmar que mais ninguém me pode ouvir. E promete, promete aqui e agora, que não vais contar a ninguém! As promessas são sagradas, sabias? Então, promete. Acredito em ti, se me prometeres...

Está bem então. Dá-me as mãos e olha-me bem dentro dos olhos. Ouve com atenção. Não vou voltar a dizer estas palavras. E não fujas, está bem? Por favor...

É simplesmente isto: Sou sensível demais e rude, quando me magoam! Tenho as lágrimas sempre próximas dos olhos e não há nada de bonito no meu choro. Choro assim, literalmente baba e ranho, até ao nariz ficar vermelho e os olhos inchados. Sim, não digas a ninguém: mas é muito fácil magoarem-me. Também sou chata e vingativa. Não gosto que me firam de propósito. Não gosto que se aproximem de mim apenas para me beberem a paz. Não gosto que me tentem roubar os sonhos e não aceito que me digam que não existem contos de fadas.

Shiu! Não me repitas tão alto. Não quero que nos ouçam. Mas sim, eu acredito em contos de fadas e sim, em fadas também. Nunca as vi, é claro, mas gosto de acreditar que estão lá todas as noites, a aconchegarem-me as mantas e a rirem baixinho das minhas lágrimas para eu sorrir também e dormir melhor.

Mas é ainda pior do que isto! Eu também sou cruel. Choro, sofro, grito, respiro fundo. Porque não há nada de bom numa reacção apressada e, na maioria das vezes, não preciso de provocar a queda de ninguém. Mantenho-me simplesmente por perto, num lugar de honra, para aplaudir as quedas, quando as pessoas que me feriram caem por si só.

Além disto, acho que a Natureza é divina e por vezes, faço vénias às árvores e falo com elas. Podes chamar-me louca. Não serias o primeiro. Chama o que quiseres. Mas ficas a saber que às vezes, nem sempre, mas às vezes, elas respondem. E, quando o fazem, dizem coisas mais bonitas do que algum dia poderás ouvir.

Sou também uma escritora de alma. E isso não significa que tenho um dom mas que fiz uma escolha! Uma escolha que implicava seguir descalça por um caminho de espinhos, nua por entre desertos de gelo, sozinha por entre a multidão. Uma escolha que definiu o quanto seria capaz de amar, o quanto seria capaz de aguentar, o quanto seria capaz de esperar. Uma escolha que me fez olhar para dentro e procurar o melhor de todas as pessoas, confiar demais e demasiadas vezes. Uma escolha que definiu que a minha felicidade seria rara e que, quando existisse, seria privada das palavras. Sim: é verdade o que se diz por aí, os escritores são tristes. Só não dizem o fundamental... que vale a pena!

Por isso, sim! Eu sou cheia de segredos. Cada um deles feito em dor . Não contes a ninguém, está bem? Não contes porque não quero que tenham pena de mim. Não contes porque ninguém precisa de saber que, por entre tantos defeitos, ainda sou uma pessoa. Não contes a ninguém que eu sinto! Porque sim, é um segredo. Eu ser humana é um segredo. Se te perguntarem, conta apenas sobre o monstro. O monstro que não sofre e que não quer saber. O monstro que quer o mal de toda a gente. O monstro.

Contei-te o meu segredo. Eu sinto e sofro. E tu prometeste! Tu prometeste que não contavas. Então cumpre a tua promessa e segue a tua vida. Eu fico aqui. Monstro entre humanos. Porque só os monstros sentem a dor de ninguém querer saber da dor que sentem!

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet (Yegin)

domingo, 22 de janeiro de 2012

Quando...



Adivinha. O comboio partiu mais cedo. Logo este, que chegava sempre atrasado à estação e deixava toda a gente ao frio, reclamando dos tons acinzentados da vida e do estado do país.
O comboio partiu mais cedo. Tão cedo que os bilhetes ficaram por comprar e as linhas se esvaziaram, deixando os bancos vazios e o chão sujo sem pegadas. Tão cedo que ninguém embarcou a tempo nessa viagem pelos reinos da fantasia.
Adivinha. Sempre era possível chegar tarde. Sempre era possível perder a esperança de seguir os rumos do destino. Sempre era possível viver assim uma eternidade, sem sair do mesmo lugar, sem ter para onde ir.
Cheguei tarde demais a esta estação fantasma, onde os comboios seguem sem ninguém e os bancos ficam vazios. As pegadas são preguiçosas demais para se imprimirem no chão cinzento. As nuvens são preguiçosas demais para deixarem que a tempestade se abata sobre o nada que preencheu o espaço onde antes havia destinos e pessoas e oportunidades.
Sento-me num dos bancos vazios. Um qualquer. Não me importa qual, nem em qual linha. Sento-me somente, com a maleta pousada ao lado e os olhos fixos no horizonte obliquo das linhas que avançam e se aproximam e convergem num ponto só, lá ao longe. Sento-me e espero. Mas, adivinha! O comboio já partiu. Partiu cedo demais e eu não estava nele.
Calada, despida de emoções, pálida e distraída, continuo a olhar para a distância, sem saber que o comboio não vem porque já foi. E talvez não me levante mais daquele banco velho e sujo. Quem sabe... quem sabe se o comboio não retorna, quem sabe se os destinos não se somam à minha esperança.
Adivinha. O comboio partiu mais cedo. As pessoas foram embora e eu também devia ir. Mas sabes, sabe toda a gente, que a minha alma é paciente e velha, anciã sem idade com esperanças de criança. Então, embora o comboio tenha partido e as pessoas tenham ido embora, eu vou esperar. Está bem? Vou esperar por esse comboio que vai parar na linha - uma linha qualquer - e me vai levar a um qualquer destino. Não me importa qual, desde que tenha risos e corações acelerados e fogos de artifício em céus nocturnos.
Adivinha. O comboio partiu mais cedo. E ainda não chegou mais nenhum para apanhar todos os que o perderam. Mas eu estou à espera. Quando ele aparecer, vou ser a primeira a entrar e vou sentar-me num lugar de frente, junto à janela. Quando ele aparecer, seja isso quando for, vou seguir rumo a tudo o que sonhei e ser mais feliz do que alguém poderá saber. Quando ele chegar, eu vou... queres vir comigo? É que depois não volto mais!

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

domingo, 15 de janeiro de 2012

Arco-íris, luas cheias e contos de fadas



Arco-íris, luas cheias e contos de fadas. Toda a gente precisa de uma razão. E estas são as minhas: arco-íris, luas cheias e contos de fadas!
Há uma dimensão da vida que é somente feita de dor. Uma dor a que alguns chamam sofrimento e outros realismo. Mas uma dor, ainda assim. Uma dor que cansa, uma dor que fere, uma dor que começa nas pontas dos dedos e acaba na ponta da alma.
Pousar a cabeça sobre a almofada, a cada noite, é por si só deixar uma oração no ar. Uma oração que implora pela inconsciência do sono, pela fantasia despida e crua dos sonhos, pelo desapego...
É verdade: a vida fere. A vida é uma criança insensata a brincar com os corações mortais. A fazer amar quem não é amado. A fazer perder quem tem ambição. A fazer chorar quem mais fez por merecer um sorriso. A vida fere. Fere de todas as maneiras, todos os dias. Rouba mais do que oferece. Oferece para depois roubar. Ri-se de nós, como se nos julgasse loucos de ainda aceitarmos essa falsa caridade!
E pousar a cabeça sobre a almofada é em si uma oração. Uma oração que pede um amanhã mais simples, uma dor mais ténue, uma força maior. É uma oração feita em silêncio, pelas pálpebras que se fecham e pela humanidade que se esvai à medida que o sono avança. É uma oração que não se diz e não se pensa. Mas que está lá, intacta e inteira, eternamente.
A vida fere. Fere no primeiro abrir dos olhos, na manhã. Quando a aurora se apresenta e o sol se ergue, condenando o corpo a mais um dia. Fere no primeiro contacto dos pés com o chão. No primeiro respirar consciente de cada madrugada.
E toda a gente precisa de uma razão para se levantar da cama e enfrentar o mundo. Toda a gente precisa de uma razão que dê sentido ao dia que ainda não começou e já tortura. Arco-íris, luas cheias e contos de fadas. São estas as minhas razões.
O arco-íris que mostra que nem tudo o que é belo pode ser tocado, as luas cheias que ensinam que não é preciso ter luz própria para iluminar o mundo e os contos de fadas que mantém acesa a esperança de se vir a ser feliz um dia, ainda que por entre as dores da realidade.
Arco-íris, luas cheias e contos de fadas. É por isso que me levanto todos os dias. Para olhar para a maravilha de coisas que a vida me diz que não posso tocar, para beber da luz de tudo o que é simples e belo e iluminar os caminhos daqueles de quem gosto, para ser a menina que, por entre tanta dor, ainda acredita em contos de fadas.
Posso estar enganada. Talvez arco-íris, luas cheias e contos de fadas não sejam a melhor razão. Mas são a minha. E mantêm-me de pé, quando tudo o resto é ruína. Por isso sim: a vida fere mas eu forço-me a acordar e a caminhar de cabeça erguida. Porque eu sei que existem arco-íris, luas cheias e contos de fadas, quanto mais não seja nas orações mudas que os meus olhos fazem ao fechar, cada vez que a vida fere...

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

domingo, 8 de janeiro de 2012

Amor a meias doses


O amor. Essa forma de expressão onde a banalidade adensou as formas verbais e lhes roubou o sentido. O amor. Deixem-me rir. O amor.

Vou sentar-me na mesa do café. Pedir meio cinzeiro, fumar meio cigarro, olhar para meia ementa e pedir meia dose de qualquer coisa. Vou comer somente metade. Só porque sim. Porque é moda. Porque as coisas inteiras implicam que me dedique a elas, que gaste tempo com elas, que me preocupe com elas.

É isso que sinto hoje em dia. Que as pessoas se sentam nas mesas de café dos seus corações e pedem meia dose de amor. Que as pessoas não amam o suficiente. Que são cada vez mais os que se contentam com o jeitinho sentimental. Que as pessoas estão sempre à espera do "para sempre" seguinte, que não será eternidade alguma, só para não enfrentarem sozinhas as realidades duras de uma solidão insensata.
O amor não é uma conta dividida por dois. O amor é um compromisso de alma. Então, porque é que se dividem as contas e não se comprometem as almas, quando se fala de amor?

Talvez à luz de holofotes de realismo eu soe uma criança a quem roubaram o "e viveram felizes para sempre". Talvez ao som das batidas da injustiça da vida eu soe a uma crente obstinada de contos de fadas. Mas eu gosto do que pareço e gosto das coisas em que acredito. Porque, sejamos honestos: a vida já não tem demasiadas contrariedades por si só? Então porque temos de matar também o que lhe resta de importante e fundamentalmente bom?

O amor. Essa forma de expressão que devia ser definida como a imensidão do Universo ou não ser definida de todo. O amor. Esse amor louco e completo, de acelerar o coração e de espicaçar a alma. O amor que nos rasga os sorrisos nos rostos, mesmo nos maus momentos. O amor que fica à distância de um gesto ou de uma palavra ou tão simplesmente de um olhar. O amor eterno e descontente, que quer sempre o horizonte e os reinos de fantasia e as possibilidades dos mundos.

Não! Eu não quero meia dose de amor. Quero a loucura e a incoerência. Quero o riso e as lágrimas. E aceito, sem medo, a mágoa, a solidão e a saudade que tantas vezes saltam para a vida de quem escolhe amar plenamente. Não acredito noutra forma de amor. Só nessa que é inteira e completa. Só nessa que não aceita ser metade de si. Não quero meia dose de amor. Quero a dose inteira. Não tenho medo da dor. Tenho medo de viver e não amar o suficiente.

Por isso, os outros, se é o que querem, que se sentem nas esplanadas sujas dos corações que dizem que têm e peçam meia dose de vida. Eu quero a vida completa. Eu quero mais do que a estadia e mais do que a passagem. Quero a felicidade. Quero a infelicidade. Quero tudo!

No fundo, se olharmos bem, não foi a expressão amor que se tornou banal. Foram os corações das pessoas que se tornaram fúteis. Não foi a sociedade a corromper um sentimento. Foi o medo a ganhar uma batalha contra as possibilidades. E também não foi a realidade a roubar a crença no amor... foram as pessoas a decidir que crescer era o mesmo que escolher não acreditar em nada.

Eu não quero o amor a meias doses. Quero a dose inteira. Quero a vivência completa. Quero receber a dor com o sorriso de quem sabe que viveu ao máximo.

O amor? Ah, o amor... eis algo que quero ter em mim até ao dia em que fechar os olhos de vez!

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet