No meu reflexo, eu ainda parecia eu. Então, demorei a
perceber o que estava errado. Demorei a compreender porque é que, olhando, me
parecia que a pessoa que me devolvia o olhar não era eu.
O meu reflexo tinha as mesmas feições. Talvez um pouco mais
esguias. Talvez cobertas por uma camada mais espessa de maquilhagem. Talvez
sobrepostas num corpo que trajava outras roupas. Mas o meu reflexo, aquele que
me devolvia o olhar cheio de sonhos, ainda tinha o meu olhar, ainda vinha com os
mesmos traços do rosto.
No meu reflexo, eu ainda parecia eu. Mas, ao mesmo tempo,
parecia que eu me faltava, naquela imagem reflectida com a qual eu me
assemelhava tanto. Movi-me com desconforto. O meu reflexo imitou-me. Suspirei.
O meu reflexo suspirou comigo.
Quem és tu? - perguntei à pessoa do espelho que,
deliberadamente, como apenas eu sei fazer, repetiu a pergunta e não me
respondeu. A ausência de resposta, impregnada de teimosia e enfado, foi, em si,
a resposta que eu procurava quando perguntei "quem és tu". E cruzei
os braços sobre o peito, erguendo o sobrolho, enquanto a imagem reflectida
insistia em ridicularizar cada movimento, imitando-o.
No meu reflexo, eu ainda parecia eu. E, depois, compreendi o
que estava errado. Como se a imagem que mostrava aquele rosto que, sem
sombra de dúvidas me pertencia, fosse subitamente, não uma réplica de mim mas a
verdade sobre tudo o que sou. E senti a vontade de me fundir na imagem do
espelho, de desaparecer nela e de, juntas, nos anularmos mutuamente até eu não
ser ninguém. Não precisei. Não precisei de adentrar os limites vítreos do
espelho. Senti-me um reflexo de mim. Compreendi.
Não sou ninguém. - anunciei. Um pensamento que soou na minha
voz. Uma voz que o espelho já não tinha e que eu me sentia perder cada vez
mais. Não sou ninguém e não tenho voz. Emudeci nesse pensamento, pelo medo de
que, se tentasse dizê-lo, ele soasse a nada e não houvesse som. Estou a
desaparecer. E o pensamento, pelo medo de ser ouvido, soou baixinho, dentro de
mim. Estou a desaparecer. Repetiu, num eco constante que me assustou e fez
endurecer a expressão que o espelho reflectia.
Aproximei-me do espelho. Aproximei-me tanto que a minha
respiração o embaciou e a imagem desfocada de mim se perdeu, no enevoado de um
suspiro. Não quero morrer. Tentei dizê-lo mas a voz faltou-me. Ou talvez me
faltasse apenas o desejo da voz. Ou tão somente a vontade de desejar o que quer
que fosse. Entrei num mundo de silêncio. E de desassossego. E de apatia. E o
espelho ia reflectindo o rosto, sempre igual, naquele reflexo de alma.
Quem és tu? - gritei, em desespero. Queria soltar as
palavras. Estava farta de as prender. A imagem do espelho não moveu os lábios
na minha pergunta. Em vez disso, retraiu-se e ficou com os olhos tristes e
vidrados por lágrimas. Continuei a gritar, louca e loucura, por entre mundos de
desassossego. Estava farta da apatia, do silêncio, da calma daquele reflexo de
mim que eu já não queria ser. Quem és tu?
A imagem do espelho limpou o rosto. Encolheu os ombros. Eu
sou o que tu escolheres fazer de mim.
Acordei. Acordei desse sonho. No meu reflexo, eu ainda
parecia eu. Mesmo com o cabelo desgrenhado e o rosto marcado pela almofada e
todos os traços desalinhados da manhã. Era uma escolha minha. Quis parecer
feliz. Então sorri. E o meu reflexo sorriu comigo.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Adorei,esse "reflexo" de cada um de nós,místico e sensível
ResponderEliminar"No meu reflexo, eu ainda parecia eu. E, depois, compreendi o que estava errado. Como se a imagem que mostrava aquele rosto que, sem sombra de dúvidas me pertencia, fosse subitamente, não uma réplica de mim mas a verdade sobre tudo o que sou."
Parabéns querida
Beijinhos Jenny ♥ ♥
gostei...vivi,reacenei...
ResponderEliminar