Ele vinha sempre à mesma hora. Não tinha compromissos que o
prendessem nem devaneios que o atrasassem. Vinha sempre à mesma hora. Enchia a
sala, enchia-me o peito, enchia-me a vida. Todos os dias. Sempre à mesma hora.
Não falhava nunca. Não me deixava sozinha, sem razão. Mudava tudo o que fosse
necessário. Não se queixava disso. Não se aproximava com um mau humor tardio,
como quem alterou tudo para estar ali. Vinha. Vinha e ficava. Sem mais
delongas. Sem desculpas. Sem problemas. Mas eu nunca o amei.
Ele vinha sempre à mesma hora. Não trazia palavras
escusadas. Sentava-se ao meu lado, olhando para mim, sem exigências. Não
importava se eu queria ver um filme, se queria trabalhar, se queria escrever ou
simplesmente deitar-me sobre a cama e ceder à preguiça ou ao sono. Não
importava o que eu fizesse. Pacientemente, ele vinha. Vinha sempre à mesma
hora. E ficava ali, junto a mim, a acompanhar-me, afastando a solidão das
paredes com a sua presença quieta. Era mais calmo do que tudo o resto na minha
vida. E estava mesmo ali. Mas, mesmo assim, eu não o amava.
Ele trazia consigo uma paz incomparável. Sentava-se.
Sossegava. Não me interpelava com nenhuma ânsia pelo que eu não tinha para dar.
Vinha, como uma respiração. Casualmente. Sem necessidades suplementares nem
desejos excessivos. Trazia a calma. Uma eterna calma que se estendia pelas
paredes brancas. Quando vinha, vinha também esse sossego incontestável. Mas,
mesmo assim, eu não o amava.
Ele vinha sempre à mesma hora. Às vezes trazia consigo a voz
cansada de um amanhã perdido no anteontem da vida. Mas não se deixava atrasar.
Vinha. E, vindo, trazia com ele as memórias. Sempre, todos os dias. Tentava
acarinhar-me o rosto. Tentava adentrar-me o peito. Tentava preencher-me a
mente. Às vezes eu deixava. Deixava porque ele vinha sempre à mesma hora.
Deixava porque ele não trazia palavras escusadas. Deixava pela paz que me
trazia. Ainda assim, apesar de tudo, mesmo deixando, nunca o amei.
Nas voltas eternas da vida, ele cansou-se de vir. Um dia não
chegou à hora certa. Um dia não se atrasou. Um dia não chegou de todo. Em vez
dele, veio o descompasso dos tempos. Mas, como eu não o amava, quando ele não
veio, não deixou saudade. Não senti a sua falta.
Ele vinha sempre à mesma hora. O silêncio. Enchia a casa, o
quarto, a minha alma. Sim. Era um amante certo e complacente. Não me deixava só
por entre as paredes de solidão. Mas eu nunca o amei. Porque eu amo o som. A
música. E o amor que vem sem hora marcada, encher a casa com todos os sons de
uma vida plena.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Muito bom mesmo,esse silêncio que insiste em se fazer presente,mas assim que some nem sentimos falta :)
ResponderEliminar"Ele vinha sempre à mesma hora. O silêncio. Enchia a casa, o quarto, a minha alma. Sim. Era um amante certo e complacente. Não me deixava só por entre as paredes de solidão. Mas eu nunca o amei. Porque eu amo o som. A música. E o amor que vem sem hora marcada, encher a casa com todos os sons de uma vida plena."
Parabéns querida
Beijinhos Jenny ♥ ♥