Para o meu avô
No tempo das vindimas, estava quente. Ou é essa a memória
que eu tenho do tempo das vindimas. São traços soltos de pensamento, meio
esbatidos, quase como se tivesse sido apenas um sonho. Eu era menina. Ficam-me
as saudades de ser menina. E as memórias - ou sonhos em retalhos - quem sabe
dizer?
Lembro-me vagamente do céu azul. De olhar para cima, para a
árvore grande. Que árvore era? Uma nogueira? Não tenho a certeza.
Chamávamos-lhe "árvore grande". Para mim, era ainda maior. Tudo
parece maior quando se é pequenino. O sol cortava as folhas e fazia pequenos
desenhos por entre a sombra. E a vinha estendia-se, ao fundo, cheia de uvas
douradas que pediam para ser colhidas.
Lembro-me da azáfama. Dos poceiros negros, que chegavam
vazios e voltavam para o tractor cheios de uvas. Lembro-me de ter medo das
aranhas e das abelhas. Lembro-me do cheiro da terra molhada e do aroma leve e
azedo da fruta que tinha caído ao chão antes de ser apanhada. Lembro-me de ter
os pés pesados, pelo chão argiloso que se colava às sapatilhas velhas. Mas tudo
isto são memórias esvanecentes. Parecem, não só distantes mas longínquas como
se fossem, não da minha infância mas de outra vida.
No tempo das vindimas, sentia-se a agitação. Lembro-me do
cansaço. E nem faz sentido lembrar-me, porque o meu contributo era perto de
nulo. Pediam-me para parar quieta. Não me diziam que eu incomodava. Mas eu
sabia que sim. Queria brincar. Falava demais. Queixava-me constantemente dos
bichos. E recolhia-me, fugindo por entre as videiras. Por vezes, ficava debaixo
da árvore grande. Por vezes, ao pé das macieiras. É aí que encontro a única
memória sólida e concreta do tempo das vindimas. E é estranho, porque esta,
especificamente esta memória, podia ter sido feita ontem. Hoje. É clara. Como
um filme que corre na memória sensorial.
Tu vinhas. Geralmente cansado. Geralmente suado. Geralmente
sujo da terra e das uvas. Sentavas-me no ramo mais baixo da macieira. Eu tirava
uma maçã. Ou tu, por mim, fazias o mesmo. Agarrando nela, amarela e morna do
sol, estendia-ta. "Descascas, avô?". Tiravas a navalha do bolso.
Andavas sempre com ela. E, com as mãos meio negras da idade, do tabaco e da
lavoura, descascavas-me a maçã, como se não tivesses pressa. Como se eu não
estivesse a atrapalhar. Como se, naquele momento em que descascavas a maçã e ma
cortavas em gomos, não houvesse trabalho por fazer. Era o tempo das vindimas.
Mas não naquele momento. Naquele momento, era o nosso tempo. Paravas. Paravas o
dia, os relógios, as Estações. Tinhas a calma da eternidade nesse momento em
que descascavas a maçã, com os olhos castanhos e doces e um sorriso cheio de
sol. É uma memória tão concreta que me lembro do calor na pele. Tão concreta
que me lembro do sabor da maçã. Tão concreta que se estende pelos anos, à
medida que as vindimas deixaram de ser feitas nessa terra que já nem nos
pertence.
Acho que o motivo pelo qual me lembro tão bem desse momento
é porque ele não era sobre uma acção mas sobre um sentimento. Um sentimento que
tento recriar, ainda hoje, sempre que tiro uma peça de fruta da árvore e a como
de imediato. "É como sabe melhor", digo. E é verdade. Sabe melhor.
Mas não sabe ao mesmo que as maçãs que me descascavas, no tempo das vindimas.
Essas maçãs sabiam a amor.
Nunca fomos muito bons a dizermos o que sentíamos um ao outro.
É incrível como nunca nos habituamos a dizer "amo-te" às pessoas que
amamos mais, às pessoas que amamos desde sempre. Mas são só palavras. Teriam,
talvez, o mesmo destino do tempo das vindimas, perdendo-se na memória de
menina. Nós tínhamos muitas maneiras de o dizer sem dizer. Chocolates quentes e
dominó e maçãs descascadas sob as macieiras que ficavam à entrada da vinha.
Já não há quem vindime. Venderam a vinha. Já mal se fala
sobre o tempo das vindimas. Quando se fala, há sempre uma nuance de mágoa saudosa,
presa à imagem de homem da terra que carregava poceiros cheios o dia inteiro,
sem reclamar. Quando se fala, fica dentro de mim a memória de te ver voltar,
esfregando as mãos, para me ajudares a sentar na árvore e me descascares uma
maçã. Já não há quem me descasque maçãs, com uma navalha e um olhar de
doçura. Tornou-se mais forte, no tempo
das vindimas, a memória do que já não é.
Mas é a coisa mais engraçada que a memória carrega... Em
alguns dias, eu volto a ser essa criança, sentada na macieira. E, nesses dias,
tu voltas a ser a pessoa forte que me olhava com ternura e me descascava uma
maçã. Nesses dias, não cresci e não morreste. Nesses dias, estamos os dois
naquele momento parado que criaste, tão vivido e demarcado, por entre os
espectros imemoriais dos quais fiz miragem. O tempo das vindimas é, para mim, o
nosso tempo. E colhíamos maçãs, em vez de uvas. Colhíamos sorrisos nos rostos
um do outro. Colhíamos memórias que nunca irão desvanecer. Faço, com essas
memórias, o melhor e mais inebriante dos vinhos. Um que tem a doçura da
recordação e do amor. O grau da infinidade sem tempo nem hora. O corpo
aveludado das sensações. Bebo desse vinho... dessa memória. Com ela, fico
alegre. E a embriaguez toma a forma de um sorriso nos meus lábios. É assim que eu
sei que, enquanto houver memória, haverá sempre o tempo das vindimas. Nesse
pensamento, poderei sempre ser a menina das maçãs. E, enquanto o for, por maior
que seja a saudade pela ausência eterna a que nos destinaram, tu jamais hás de
morrer.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Um texto lindo. Os textos que escreves para o teu avô são especialmente comoventes - deviam ter uma relação muito bonita. Consegui imaginar as paisagens e os sentimentos que descreveste e sentir a tua melancolia.
ResponderEliminarQue lindo,é o segundo texto que leio sobre seu avô e pela segunda vez me emociono.
ResponderEliminarParabéns querida.
Beijos Jenny ♥ ♥
***li o texto antes desse,mas não estou conseguindo comentar nele,também é perfeito :)
Há muito tempo que aqui não vinha...Talvez este tempo, que ainda cheira a vindimas, me trouxe de volta para ler um texto maravilhoso,que nos leva a lembrança para memórias tão vivas e ainda tão presentes ...
ResponderEliminarMuitos parabéns e obrigada pela partilha.
Maravilhoso, cheio de sentires s sensaçoes...
ResponderEliminarObrigada