terça-feira, 8 de novembro de 2016

Antes de nascer o sol



Quando as roupas caíram no chão e os corpos se deram parecia certo. Mais romântico do que casual. Era o fundo do copo, na noite que se fazia manhã. Sem clichés. Sem responsabilidades. Sem promessas. Era o amor, regado a cerveja e tequilla. Não deixava espaço para a vergonha nem para a inibição. Disseram palavras de afeto, rolando nos lençóis como quem dança a mais lasciva das danças. E, em seu redor, as paredes exalavam o odor do ópio e do desespero audaz. Inebriava-os com a noção intemporal dos corpos que lutavam, que embatiam, que se completavam. Sem clichés. Sem responsabilidades. Era melhor assim.
Estranhos na noite, fizeram-se conhecidos nos recantos suados, sob o olhar casual de olhos que não viam. Os deles encontraram-se. Por acaso. E os corações, que já não conheciam ritmo que não o do pulsar caótico e retumbante das colunas, julgaram, na ilusão dos graves, que talvez pudesse ser o destino. Não era destino. Era ocasião. E o fumo. E a erva. E as bebidas. Mas importa pouco, se pensarmos nas formas como também as bebidas e a erva e os fumos podem ser destino. Ele perguntou-lhe o nome. Ela perguntou o dele. Não ficaram a saber nada. No centro da agitação, a música era o nome completo das centenas de pessoas que ali se juntavam. E eles, que nem sabiam bem se tinham ouvido o nome um do outro, perderam-se de amores pela ilusão desse destino bêbedo e drogado que se fazia nascer, fruto do suor da noite.
Beberam as histórias da vida um do outro em copos de shot. Apagaram nas passas os vestígios da bagagem que arrastavam. Riram. Dançaram. E arrastaram-se para os braços um do outro, até o toque dos lábios lhes arder na língua e se fazer droga. Viciaram-se nesses beijos. E o destino que não era destino ajudou a fermentar aquele amor que não era amor, até que se arrancaram roupas do corpo e desejos da pele. Repetidamente.
Foi por isso que, quando as roupas caíram no chão e os corpos se deram parecia tão certo. Tão mais romântico do que casual. Uma vibração tosca da sintonia dos homens com a Terra. Uma vibração tosca da sintonia das mulheres com o sonho. E das mulheres com a Terra. E dos homens com o sonho. Que despidos são todos pele e músculo e osso - só mudam os orifícios e as saliências. Sim. Terra e sonho. Era isso que tornava certa a obscenidade. A luxúria, após a noite quedar, não era mais pecado do que a comunhão. Era um ritual divino entre dois seres que se achavam, depois de perdidos e que se perdiam para se encontrarem. Um ritual algo cru. Algo áspero. Mas que, para eles, era todo feito em suavidade e alegria. Ainda bem para eles!
Toda uma imensidão. Sem clichés. Sem responsabilidades. Sem promessas. Só com o toque. Uma luta corpo a corpo. Desumana. Na batalha dos sentidos que terminaria, ao nascer do sol, com o caminho feito nas roupas da noite passada e os olhares de vergonha colados ao chão. E com asco colado na sola dos sapatos. E pó nas roupas. Porque, de súbito, as bagagens esquecidas caem na cama, estrondosamente. Lembrete da história que os faz pessoas. Lembrete da vida que ficou e da que segue. Então, o corpo nu não faz sentido. E o cliché assume-se. E a responsabilidade aparece, raramente só. A promessa que nunca se fez foi quebrada.
Eu sei. Não parece. Mas é uma história de amor. De comum, olvida-se (ou condena-se). Mas ainda é uma história de amor. Talvez não de um amor que se dá – ou recebe. Mas de um amor que se faz. Depois de meia dúzia de copos virados.
Para eles, parecia amor. Agora não parece. Mas parecia. Mais romântico do que casual. Antes de nascer o sol. Quando as roupas caíram no chão e os corpos se deram.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet




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