Começou com a mais pequena das coisas. Uma parte de mim
disse: “vai ser fantástico”. E logo outra respondeu: “e se não for?”.
Discutiram, dentro de mim, à medida que, enfiada dentro de um bibe com riscas
rosadas e brancas, metia um pé à frente do outro, preparando-me para os
primeiros dias de escola. Foi de uma forma tão inocente, tão suave, tão calma
que não fiz caso. Mas começou assim. O duelo.
Claro que, com canudos encaracolados e laçarotes no cabelo,
dentro de vestidos com pregas e em xadrez, com uma lancheira na mão e uma
mochila de brinquedos às costas, parece tudo muito mais importante e muito
pouco nocivo. O coração tropeça acelerado no peito, como se a vida dependesse
daquele dia… mas não o suficiente para se achar que é a morte a bater à porta.
E uma voz vai dizendo “vai ser fantástico”. E outra vai questionando. E é como
se não houvesse vozes.
Mas passaram os anos. Vieram os testes. As maratonas. As
discussões com amigos. A entrada abrupta e de rompante da puberdade. Os
primeiros amores. E, diários que se enchiam com as palavras das vozes, uma ou
outra. Às vezes ambas. Em simultâneo. Uma em cada frase. Partilhando frases.
“Vai correr tudo bem” – dizia uma. E logo a outra respondia: “vai dar asneira”.
Nem sempre em termos tão educados. Nem sempre com tanta serenidade. E, se a
primeira voltava, insistindo: “Tu consegues, tu és capaz!”; logo a segunda se
impunha: “nunca conseguiste nada, não passas de um falhanço completo, a
insistir no que nunca há-de ser”.
Construí, com as pedras que a primeira voz me dava e a
segunda me atirava, muitos sonhos e muitas metas. Era como fazer um castelo de
cartas com os Ases e as Copas da primeira voz e vê-los cair no sopro constante
da segunda. Às vezes venci, às vezes fui derrotada. Não pelas vozes. Pela vida.
E elas lá se debelavam uma à outra, dentro da minha cabeça, à medida que eu
fazia por ser pragmática e fingir que as coisas seriam como tivessem de ser.
Mas o amor… (não é sempre o amor?!) entrou pela porta do
fundo do meu pensamento e ganhou metástases em mim. Enraizou-se. E eu, que tinha
sempre tentado calar as vozes em mim, dei-lhes ouvidos. “Tenta, tens de
tentar”, dizia a primeira. “Ele nunca vai olhar para ti”, dizia a segunda. “Vá
lá, vai correr bem.”, insistia. “Faz como quiseres, quem vai morrer infeliz és
tu!”, respondia a segunda.
Fui. Fosse no teste, no amor ou na vida. Durante muito
tempo, a insistência do “não”, do “nunca”, do “nada” prevaleceu. Muro em frente
dos meus passos. Nuvem sobre a minha cabeça. Modelou-me. Venceu-me. E eu tentei
calar as vozes. Ambas. Tentei ouvir a minha própria voz.
Um tanto ou quanto vazia, de olhos fechados e coração
aberto, percebi por fim. Elas são a minha voz. Perceber mudou tudo.
Uma parte de mim disse: “agora vai dar certo”. E logo outra
respondeu: “nunca dá certo”. Desde então, travam um duelo entre o que é feito
na raiz da felicidade e o que definha na raiz da mágoa. É um duelo à moda
antiga. Até à morte. E fico de lado, esperando para saber se me morre o sonho
ou o cinismo.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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GOSTEI ...DIRIA CONVINCENTE...ESTAVA JA COM SAUDADES DE TEU SUSSURROS POEMATICOS ,AMO MUITO..LINDO TRABALHO PROEGMÁTICO.
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