Para a minha mãe
Estará, provavelmente, impresso por aí. Numa qualquer
fotografia desfocada, descentrada e em sobreexposição. Porque é essa a nossa
maneira. E, por estar tão explicitamente colocada no centro do que distrai, a
maioria das pessoas não irá ver. Não faz mal. Gostamos mais da cegueira das
pessoas do que das pessoas em si. E elas, na sua simpatia e desapego, por muito
que não o digam, também não são fãs do que permanece impresso. Nessa
fotografia. O espelho.
É certo que fica atrás de uma camada flamejante de luminosidade.
E tremido. E num canto mais ou menos incompreensível. Mas está lá. O espelho.
Fica no sorriso, cúmplice e aberto. No abraço, quebrado pelas cócegas e pela
conivência. Nos olhos rasgados, semicerrados. No olhar. Tão longe do que é
passível de ser entendido. É espelho. Não a foto. A vida. Tu e eu. Monstros.
Mas tão diferentes do mundo e tão iguais, que se espelha até a parte mais
invisível da alma que luz. E eu vejo-te. E tu vês-me. E o mundo não nos vê. Mas
não faz mal. Também gostamos mais da cegueira do mundo do que do mundo em si. E
o mundo, na sua elasticidade meio plástica, por muito que nos ignore, também
não pára para olhar para nós e nos revirar os olhos. Pela fotografia. Pelo
espelho.
Cada dia que passa se torna mais visível o traço da ruga que
se vai formando, ali mesmo ao lado do coração. Abrindo a cada tic e a cada tac,
a cada movimento do ponteiro. Um traço que se faz linha e que se ata e que faz
nó. A minha uniu à tua, num momento qualquer. Talvez quando o tempo decidiu
fazer-me romper as entranhas do teu corpo e sair. Apresentaram-me ao mundo. E
às pessoas. Mas eu sabia. Sabia que eu não era nem das pessoas nem do mundo.
Mas antes desta linha que se fez laço, que se fez nós… que nos fez espelho. E
talvez por isso eu tenha chorado. Talvez tenha sido só a alegria de saber que,
no centro de um mundo de ódios, o teu amor me valia a comoção. E chorei.
Enquanto te devolvia o mesmo amor. Um que não tem começo nem fim nem
equivalência. Nesta vida ou noutra. Nunca.
Há muito tempo atrás, quando foste tu a nascer, por um motivo
ou por outro, demoraste a chorar. Talvez, nessa pausa que se fez em teu redor,
estivesses à procura das razões. E deves tê-las encontrado. O teu choro virou
riso. O teu riso virou prisão. A tua prisão virou maternidade. Uma vez. Duas
vezes. Três vezes. E ali estava. Eu. Monstro como tu. Espelho. A chorar.
Chorámos juntas, às vezes. E rimos juntas, às vezes. E tirámos muitas
fotografias desfocadas, descentradas e em sobreexposição. Espelho. Sempre
espelho. Imitando aos poucos a sensação do que se move de mansinho, entre a
eternidade do dia que passa e a do dia que começa.
Tive o meu coração a bater fora do corpo desde o primeiro
bater do teu. E tu arrancaste desse coração uma parte que me puseste nas mãos.
No centro de um mundo - que não amamos – e de uma amálgama mais ou menos amorfa
de pessoas – que também não amamos - , o que aprendemos foi a forma mais pura
do amor – a sua gotinha de água, ínfima e perfeita – o amor que temos uma pela
outra.
Não sou a melhor pessoa do mundo. Mas para ti sou. Não és a
melhor pessoa do mundo. Mas para mim és. Espelho. Eu vejo-te. Tu vês-me. Igual.
A cegueira do mundo não importa. O isolamento causado pela cegueira não
importa. Importa o reflexo. Este. Meu e teu. Onde o amor olha para o amor e sabe
quem é. Monstro. Mas não faz mal ser Monstro. Olha ali, na fotografia.
Espelho-te. Espelhas-me. Tu tens-me a mim. Eu tenho-te a ti. Não estamos sós.
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