terça-feira, 7 de julho de 2020

Datas


Alguém me dizia. Muitos alguéns. Eu sou péssimo com datas. Não! Eles não eram péssimos com datas. Eles eram péssimos a recordar datas. A lembrar em que dia estavam e todos os acontecimentos – mais ou menos importantes – que o marcavam. Eles não eram péssimos com datas. Ainda que se esquecessem de eventos, de aniversários ou simplesmente do dia da consulta médica. Eles não eram péssimos com datas. Péssima com datas sou eu, que me lembro de todas.

 

Chega o dia. O dia que é mais um dia. Igual aos outros dias. No mesmo calendário gregoriano que todos usamos. E que podia ser juliano, etíope, chinês, islâmico, judaico ou até maia… Chega o dia. E o meu corpo todo sabe que o dia chegou. E a minha cabeça serve de folhinha com um vistozinho em cima de todos os acontecimentos que o marcaram. E o meu coração dói. Desculpa.

Hoje, o dia nasceu antes de eu acordar. Ainda não tinha acordado e o meu sonho já era o dia de hoje, ainda adormecido, trazendo-o, desperto, nos meus olhos fechados. Quando acordei já havia uma dormência nos pés, nos braços, nas pernas. Quando acordei, já havia um choro pendurado no ardor do nariz e uma grande falta de vontade de respirar. O pensamento permanecia, incauto e ingénuo, a tentar fugir do óbvio. E todos os neurónios funcionais riam da apoptose das células mortas na noite, sem compreenderem que, em mim, apenas essas estavam bem. Teria sido uma boa noite para morrer. Mas acordei de manhã. E o dia tinha nascido antes de eu acordar, trazido pelo sonho povoado de passados e memórias.

 

O dia tem uma forma de perpetuar o destino morto no tempo. Fantasma e zombie de si mesmo, o dia carrega um cheiro pútrido de felicidade fora do prazo de validade. Peça de fruta, outrora doce, e hoje podre e bolorenta nas minhas mãos, que ainda querem ver nela um fruto vibrante e vivo. É uma merda quando o fruto apodrece. Deixando que o sabor de um amor maior do que o tempo passe a saudade e bolor. Deixando que a eternidade se transfigure em vazios. Plurais. Dissidentes. Insuportáveis.

 

O dia tem um milhar de milhão de horas. Cada microssegundo se transfigura em hora. Cada bater de coração é lâmina. E cada hora é uma memória nova, trazida na prece inconsistente do peito, que quer morrer ali, outra vez.

 

A paisagem que vejo com os olhos fechados é ampla e verde. Tem uma história que não é minha e um pedido, aos pés de uma cruz de pedra. E um pedido, entre o ar e o verde. Sê minha. Sou. Insisto que sou. Mas não sou. E o milhar de milhão de horas do dia pesam-me como se fossem vidas e vidas do mesmo desalento amargo.

 

Eu sou péssima com datas. Péssima. Porque me lembro de todas. Principalmente das importantes. Pormenorizadamente. Guardando segundo a segundo uma memória tão vívida que nunca se apaga. Já tentei matá-la. Com analgésicos, como se matam dores. Com álcool, como se matam vírus. Com tempo, como dizem que se matam amores. Mas eu sou péssima com datas. E não me fodam! Os amores não morrem, nem com tempo, nem com ácido sulfúrico!

 

Alguém me dizia. Muitos alguéns. Eu sou péssimo com datas. Não! Eles não eram péssimos com datas. Eles eram péssimos a recordar datas. Bom para eles! Péssima com datas sou eu. Que me lembro de todas. E morro um bocadinho de as lembrar, de todas as vezes que as lembro, lembrando sempre.




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