terça-feira, 21 de julho de 2020

Sete mil anos

Fotografia de Astro Photography

1997

Foi nas Portas do Paraíso. Há alguns anos. Gentes que eram seita numa fé cega. Crentes de outros mundos. Persuadidos pela voz que avisava. Não há outro meio de evacuar a Terra. Quiseram ir. E foram. Vidas ceifadas debaixo da luz da estrela que passava. Almas ofertadas à fé oca. Queriam ir na cauda do cometa.

 

2020

O cometa passou. Estava quente a rua e fria a alma. Porque as ruas veraneantes estão pensadas para ser quentes. E a alma não tem temperatura além da que se imagina que tenha. O cometa passou. Disseram-me. Agora. O cometa passa agora. E, depois, só daqui a sete mil anos.

 

Não sou seita nem sou cega. Mas tenho, para mim, o espaço descurado de uma fé. E pensei. Ele podia, quem sabe, levar. Não a mim, que ainda tenho um ou dois poemas por escrever. Não a mim, que ainda tenho corpos para envolver nos braços. Não a mim, que quero ler pelo menos os clássicos e semear uma ou duas plantas aromáticas, destinadas a morrer sem fruto no fundo das minhas panelas. Mas o amor. Raios. Ele podia levá-lo.

 

Não enviaria o amor na sua cauda por nenhum motivo errado. O meu amor é um amor que merece o universo porque apenas este o iguala. Imagino a felicidade desse amor, vivendo a aventura da viagem milenar, antes de retornar ao mundo dos homens. Imagino o meu amor ficar leve na viagem e sorrir. No meu peito, ele arde e pesa. Quer tudo o que eu não lhe posso dar. Universos-corpo. Universos-partilha. Universos-sonho.

 

Por isso, levantei-me levemente no toque do despertador. O toque das quatro matutinas artérias que iriam subir a serra para libertarem esse sentimento que pede universos que eu não posso dar. E olhei o nascer de sol e o pôr de lua. Por tanto tempo... Inebriada com as linhas do nascer do dia e com o brilho astral dos planetas mais próximos e com o vento nas árvores sob a luz morna da lua quebrada. Olhei. Olhei em busca desse cometa que não vi. Porque havia estrelas e havia planetas e havia lua e só.

 

Sem encontrar essa cauda de cometa na qual podia prender o meu amor, voltei para casa. A cabeça na almofada. Som e sonho de uma música tocada por Bethoven nas noites de sonatas ao luar. Acordei para descobrir que a estrela tinha cauda. Para descobrir que, nela, eu não enviara nada, senão a contemplação inerte e feliz de uma hora de plenitude.

 

1997

Foi nas Portas do Paraíso. Gentes que eram seita. Fé que era cega. Persuasão e vontade. Fuga ansiosa deste mundo louco. Almas ceifadas coletivamente. E a partida, na cauda do cometa.

 

2020

Olho o céu. Mesmo no local onde estava a cauda do cometa. O dia quis amanhecer sem que sacrificasse o amor.

 

Olho o céu. O meu amor vivo, contemplando o infinito, a pedir universos que não posso dar-lhe, porque me escapa a vontade, em alguns dias e a possibilidade em todos os outros.

 

Olho o céu. O meu amor vive. Sinto que é ele que me diz, desalentado. Eu queria ir na cauda do cometa. Tento acalmar-lhe a ansiedade. Tem calma, talvez daqui a sete mil anos…




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