Havia uma borboleta branca dentro da clínica. E uma pandemia nas ruas. E mil regras. Prendendo-me à rua como a prendiam ao interior de um edifício onde fatidicamente haveria de morrer, se ninguém fizesse nada. E a segurança pedia: não sejas humana. E as regras diziam: não sejas humana. E a senhora da clínica rosnou-me: não sejas humana. Estávamos ali, todos nós, a construir a desumanidade.
A clínica fica no centro de um jardim primaveril. Tem as suas árvores, a sua relva impecavelmente tratada, as suas flores, os seus insetos engraçados e as suas esvoaçantes borboletas e abelhas, livres de preocupações. Cá fora, tem pessoas como eu. Definitivamente sem liberdade e com preocupações que adensam, com o rodar do ponteiro, à medida que os nossos familiares, abandonados no interior, fazem sozinhos a jornada que lhes cabe, de gabinete em gabinete, de exame em exame.
Cada um de nós, nos bancos do jardim impecavelmente tratado da clínica, tem a sua própria história. Esta é a minha. Dentro da clínica, naquela tarde, estava a minha avó – desolada, ansiosa e só – e uma borboleta branca - a morrer aos bocadinhos no sufoco de um vidro, a partir do qual podia vislumbrar o sonho de um destino que devia ser o seu. Duas coisas me angustiavam: não poder ver a minha avó e poder ver o voo incessante da borboleta contra o vidro, imaginando a ansiedade louca da minha anciã e assistindo ao término lento da vida de um ser vivo que podia ser salvo com o abrir de uma janela ou duas mãos cautelosas e abnegadas. Ambos os problemas se resolviam com, literalmente, o atravessar da mesma porta. Mas havia a pandemia. E eu era, agora, escrava da rua, escrava das regras. Dona da mais profunda sensação de impotência.
A borboleta esvoaçou. Contra o vidro. Sombra de alvoroço, de pânico, de ansiedade. Contra o vidro. Continuadamente lançando-se nessa busca pela liberdade. Insistindo como apenas os instintos mandam. Uma pessoa teria desistido. Mas a borboleta esvoaçou. Branca nas suas asas e lívida na minha imaginação. Sobra da tortura límpida, translúcida e transparente dos nossos vidros desumanos. Nós só sabemos criar regras e barreiras. E agora mais… com desculpa.
O meu coração estava situado no limiar entre a laringe e a traqueia. E ditava-me que, cumprindo a promessa que fizera à minha idosa, irrompesse porta adentro e fosse o ombro de que sabia que ela precisava. Ditava-me que, cumprindo a promessa da minha alma, irrompesse porta adentro e salvasse a borboleta. Mas as regras – essas para a segurança, alegadamente – impediam-me de colocar um dedo dentro do espaço impecavelmente desinfetado da clínica. As regras diziam que me conformasse. Com a desumanidade do mundo.
Aguentei, como dá para aguentar. Sentindo ferver nas veias a noção de que foram séculos de avanços para voltar tudo atrás num vírus. E o fervor do sangue nas veias ditou a sentença e eu cheguei à porta, implorando para, pelo menos, alguém fazer alguma coisa para ajudar a borboleta que, mesmo estando a um passo de mim, estava a mil anos-luz. Insistiram. Eu não podia entrar. Mas suponho que, mesmo com máscara a cobrir a linha reta dos meus lábios coléricos, se tornava possível assistir à fúria dos meus olhos. Porque, muito a custo, a funcionária lá se levantou da sua tarefa e libertou a borboleta do seu sofrimento.
Ela saiu. Fez o seu voo de borboleta branca livre e atenuou um pouco a mágoa que eu trazia no peito, deixando o coração ligeiramente mais leve, agora ao nível da traqueia, um pouco mais perto do seu quadrante lateral esquerdo, onde serve para pouco além de sofrer e se preocupar com o mundo e com os meus.
Comentei com a minha mãe. Isto é desumano. Ciente da pandemia. Ciente das regras. Ciente de que as regras – alegadamente para nossa segurança – são a forma como estamos a construir a desumanidade.
Não podemos auxiliar o nosso idoso, que apenas precisa de presença. Não podemos auxiliar a borboleta branca, que apenas precisa que abram uma janela. E, desculpem, eu não posso calar-me quando não consigo deixar de me questionar. Fechar os olhos a isto não será um primeiro passo para nos despirmos de nós? Não será o passo crucial para que abandonemos todas as noções arduamente edificadas sobre a vida e a partilha e a equidade? Não será a forma de nos esquecermos e deixarmos de nos importar com outras formas de angústia, de tortura, de desapego? Não é este o primeiro passo para limpar sensibilidades, tornando estéril o pedaço de alma – antes fértil – onde se poderia semear a mudança que se quer no mundo?
Penso que estamos a trabalhar na desconstrução de décadas e séculos de aprendizagem. Penso que estamos a construir a desumanidade. Penso que isto vai ter um custo pior do que a sepultura.
E sim… eu sei. Estão a tentar proteger o mundo. Mas acham que o mundo somos nós e os nossos umbigos. Estão a tentar proteger o mundo. Repetem e eu ouço. Estão a tentar proteger… o mundo… as pessoas… a mim. Mas eu não sei. Não sei se estamos a salvar alguma coisa. E resta saber: se salvarmos mundo do vírus e sobrevivermos, ele ainda vai ser um mundo aonde valha a pena estar vivo?
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