Quando eu nasci, a minha alma já tinha vivido muitas vidas. Era idosa, idónea, sábia. Tinha muitas eternidades no âmago. Já tinha sido pacifista e guerreira, conhecido o amor, perdido o amor, recuperado o amor. Quando ela nasceu, vinha pronta para viver. Tinha todas as ferramentas, todos os conceitos, todas as aptidões. Mas o corpo era novo e teve de aprender tudo outra vez.
Primeiros passos e primeiras
palavras soaram a primeiros sonhos. Criados na voz das estórias antigas dos
contos que se contam às meninas de ilusão fácil. Mas a alma já tinha passado
pela desilusão e dizia, nas entrelinhas, com um toque de realidade por entre o glitter, que a vida não era destino mas
guerra. Assim. Prepara-te, menina: quando
as pernas te forem mais longas e os dedos mais eficazes, haverá mais vilões do que
heróis na tua história. Prepara-te para lutar.
O vilão da vida era o tempo. O tempo, diziam-me os adultos, levava os sonhos. Corroboravam com as palavras da alma sobre a noção tardia de dificuldade, distanciando-se, ainda assim, da sua rebeldia eterna. Nos seus ensinamentos, cada vez mais negros com o passar dos anos, saíam pedaços de sabedoria gelada e crua. Diziam que era preciso deixar que o tempo nos mudasse. Que era essencial crescer. Largar os sonhos-meninos. Avançar pelo concreto. Calçar as normas dos outros. Anuir. Aceitar.
A minha alma já era velha quando
eu nasci. Não havia parte dela que estivesse disposta a ceder. Dizia-me, na sua
voz idosa: Se maturidade é desapego,
escolho não amadurecer. Se crescer significa largar a magia em nós, escolho não
crescer. E, se ser adulto é deixar de voar na sinestesia das horas, então para
que raio fizeram os Deuses um céu tão vasto? Cresce, mas não deixes que te
cortem as asas!
O corpo que crescia ouviu. Ser adulto não é esquecer a criança que fomos. Ao ouvir mais o Universo que ficava por dentro do que o mundo que ficava de fora, o meu corpo crescido escolheu, sem pensar, todas as batalhas dessa Guerra do Eterno.
Defendensor de sonhos e conceitos só seus, descobriu que ser adulto é um combate constante em defesa da criança que se foi. Mas também compreendeu. O sonho é uma nação inteira pela qual vale a pena lutar. O sonho é uma nação inteira pela qual vale a pena morrer.
Vou só, nessa batalha contra os anos que passam, contra as horas e os minutos e os segundos. Combatendo-os, todos os dias, quando me dizem para desistir.
Eu sei. Dizem que o tempo rouba os sonhos. Mas não. O tempo só leva os sonhos das almas que se rendem.
A minha alma é resiliente e louca. Quando eu nasci, já tinha vivido muitas vidas. Era idosa, idónea, sábia. Toda feita de eternidades. Aceitou, com este corpo, o desafio de uma nova guerra pelo Eterno. Tomou o seu lugar sobre a minha pele massacrada. Pediu-me que não desistisse e jurou-me lealdade. Depois, com a sabedoria das suas mil vidas, pediu que escolhesse a minha arma e avançasse, de peito aberto, na luta pelo sonho.
Fui.
Da sua dedicação fiz armadura. Abri o baú das armas. Escolhi o amor… e as palavras.
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