terça-feira, 13 de julho de 2021

Não preciso

 



Desengana-te, meu querido, eu não preciso de ti para nada!

 

Nas estantes dos meus livros já existem mulheres suficientes que precisaram. De ti. De alguém como tu. De um ser qualquer, capaz de dar o que elas, por educação ou virtude, não conseguiam fazer. Não sou personagem literária, mas autora. Coloco nas linhas a capacidade de ser e de fazer o que me aprouver. Sozinha. Sem precisar de afago, de embalo, de palavra de incentivo. Aceito-os, mas não preciso deles. Sei exatamente onde pôr as vírgulas nas frases da minha vida. Não preciso que me pontues. Nem que me acrescentes superlativos ao excesso do que já sou.

 

As prateleiras altas da cozinha podem fazer-te pensar que preciso de ti. Não preciso. Já comprei os degrauzinhos extra que me elevam ao patamar superior... e raramente os subo porque, dotada de racionalidade, soube colocar à mão as coisas de uso corrente. Baixei até os copos de vinho para a prateleira de baixo, à medida que a ausência começava a pedir taninos. E não! Não preciso que me abram as garrafas. É uma arte que domino. Tão profissional e exímia que, se um dia fizer outro currículo, talvez coloque isso na primeira página. Sobre mim. Sei abrir o vinho sozinha. E apertar os atacadores também!

 

Poderás pensar que preciso de ti. Para o corpo. Mas o corpo sacia-se facilmente com gestos e toques. Com o escorrer da água quente dos duches pelas costas. Com a meiguice do toque trazido pelas mãos que espalham o creme hidratante. Com as mãos que preparam as refeições e que oferecem o conforto e o prazer, se tal lhes for solicitado. Não tenho medo do corpo. Nem nojo do corpo. Nem esses preconceitos, presos no limite da pele que emana desejo. E, por isso, sou autossuficiente também no cuidado físico.

 

Também tenho as contas pagas, apenas com o fruto do meu trabalho. Não preciso de prendas, nem de prendinhas, nem que vão comigo às compras. Não preciso que me paguem os jantares, nem as roupas, nem os essenciais do supermercado. Nem a mensalidade da casa. Nem a luz. Nem a água. Nem o gás. Nem o ginásio. Nem a gasolina. Não sobra muito, é verdade, mas está tudo pago. Dívidas tenho apenas para comigo e vou-as saldando com as migalhas, em extras ocasionais que sei dar a mim mesma quando e porque me apetece.

 

Amo-te. Mas desengana-te, meu amor, eu não preciso de ti! E, se precisasse, seria porque não te amava. O amor não é figura de utilidade nem palavra de uso. O amor é a plenitude dos sentidos quando se desligam as necessidades. Quando não precisamos que o outro seja útil. Ou importante. Ou que tenha um bom carro, uma boa casa, um bom emprego. Amor é o que sobra quando sabemos que o outro, mesmo se despido de tudo o que tem, ainda nos é mundo, ainda nos é tudo.

 

Eu não preciso de ti!

 

Haverá maior prova de amor do que saber que não se precisa de ninguém... e, ainda assim, amar?

 

Eu não preciso de ti!

 

O que eu preciso é de abrir os dois degraus da cozinha. De subir à prateleira mais alta e de guardar este amor. Não penso que o vá usar muito. Porque, apesar de gratuito e independente, penso que tu não o queres, não precisas dele... e é demais só para mim!


 Marina Ferraz






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