terça-feira, 22 de abril de 2025

Terra (Olha para mim)

Vídeo de ADN Agência de Notícias

Documentário: @Paulo Oliveira | Texto e interpretação: @Marina Ferraz | Drone: @David Duarte



Olha para mim.

 

Não. Não olhes como olha quem tem olhos e não vê.

 

Olha para mim.

 

Olha-me quando sou semente, quando sou sol, quando sou vento. Olha-me e vê-me no correr do rio. No estalar da argila. No dançar das canas. Olha-me e vê-me na espuma que fica depois da onda, na onda que vem, e vai, e volta... para partir novamente.

 

Não vás. Não vás pelos caminhos de estrada e betão.

 

Segue-me até ao trilho de montanha. Desce comigo ao vale. Encara o nascimento e morte dos dias.

 

Olha-me. Olha-me na noite. Olha-me os ornamentos cintilantes das estrelas. A luz reflexa do luar. Aprende a amar o que fica longe demais para tocar. Aprende a amar o que tem fases. O que mingua e desaparece, para aumentar e ser farol noutro dia.

 

Olha para mim.

 

Olha para os seres que correm entre as ervas. Olha para os pássaros que voam. Observa como planam e cantam. Aprende, com eles, a arte de migrar. Tudo é viagem...

 

Olha para mim. Conhece a arte da serenidade. Descobre que o ciclo, o círculo, é vida. Mesmo quando culmina num último sopro.

 

 

Escuta-me.

 

Não! Não escutes como quem apenas ouve.

 

Escuta o som das minhas entranhas. Quando falo. Quando canto. Quando grito. Quando expludo. O vulcão. O grilo. O restolhar das folhas. O eco do trovão. O canto das ondas, essas sereias de tempo imemorial e sonho. Ouve o borbulhar das águas vulcânicas. O ceder da pedra na encosta. O pássaro. A cigarra. O roer inconstante da madeira velha pelos bichos-gente que a povoam. Ouve o clamor leve das estações que passam. O ranger dos troncos. O correr da ribeira. O adormecer do sol no oceano. O som que os dedos da via láctea arrancam das teclas negras da noite.

 

 

Toca-me.

 

Não! Não me toques breve, inutilmente, com essas mãos que não sentem.

 

Toca-me num mergulho inteiro. Mãos enterradas na areia e acariciando os troncos. Corpo dado à maré-cheia. Enlace de dedo com folha. De dedo com flor. De dedo com pelo. Toca-me como quem ama. Sente o veludo e a rugosidade da minha pele sem corpo. Crava o toque nas entranhas viscosas das minhas vísceras. Toca-me. E sente-me.

 

Descobre que sou tecida de texturas dispares. Que sou camada sobre camada sobre camada de muitas sensações que não são para quem fica à superfície. Madeira e água. Pedra e terra e corpo. Corpo-escama. Corpo- pena. Corpo-pelo. Carapaça e nudez anfíbia, fria e furtiva.

 

 

Prova-me.

 

Não. Não me proves. Saboreia-me.

 

Lambe o tecido férreo dos meus minerais. Entende a subtileza dos frutos sadios que crescem na orla das montanhas. Trinca a maçã verde e a amora silvestre e a laranja de inverno.

 

Sente o sabor da chuva e do trovão a picar nas línguas atentas. E o sal que fica na pele depois do mergulho. E a sensação doce e fresca da água colhida nas nascentes.

 

Saboreia-me em pratos de respeito. Honrando a morte de cada vegetal e fruto, assim como a de cada ser que te alimenta. E conhece-me o acidulado, o dulçor, a mistura inebriantemente agridoce do meu âmago.

 

 

Cheira-me.

 

Não! Não como quem busca o perfume encapsulado e constrito. Não me conhecerás em qualquer perfumaria. Mas vem...

 

Vem cheirar o começo do verão. A neve. A floresta cerrada, encerrada, onde as folhas fazem cama que será alimento. Os jardins floridos. Os pomares. O pelo molhado dos animais. A erva pisada, cortada, crescida. O vento do sul. O vento do norte. A areia beijada de mar. A salina. O fogo. A terra sulfurosa das ilhas. O ar marinho pela madrugada. O ar.

 

Vem sentir o aroma do outono, diferente na queda de cada folha. E sente o cheiro da poesia, que emana. Sempre. Se escolheres cheirar como quem vive.

 

 

 

E, depois, entende.

 

Não entendas como os doutos eruditos das academias, mas como os despretensiosos sábios do burgo...

 

Quando me olhares. Quando me escutares. Quando me tocares. Quando me provares e cheirares. Terás então marcado encontro contigo mesmo.

 

 

Descobrirás quem és: Espelho e pertença... A raiz do átomo e do universo.

 

Tu és eu e eu sou tu.

 

Natureza.

 

 

Pena que não olhes. Pena que não escutes. Nem toques ou proves ou inales essa essência de ti.

 

Porque sou tua Mãe.

 

E, doce humano, por mais cruel que sejas, por pior que faças... quando te olho, escuto, toco, provo e cheiro... vejo essa raiz de matéria sonho.

 

Então dou-te abrigo e embalo-te.

 

Até que acordes os sentidos.


Marina Ferraz




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