Há alguns dias, cruzei-me com esta frase de José Saramago: “A harmonia é compatível com a indignação e a luta; a felicidade não, a felicidade é egoísta”. Algo estranho aconteceu. Discordei.
Não é comum, entendam, que eu
discorde do “nosso” Prémio Nobel da
Literatura – como é engraçado que algo se
torne “nosso” apenas e só porque nos traz o sucesso que, enquanto povo, não
temos. Como se nos arrastasse da pequenez e nos aproximasse dos feitos de
outrora, lembrados em hipérbole heroica, como se a crueldade não fosse a única
imensidão da história. Sempre achei que Saramago tinha uma aura de
iluminação, daquelas que cabem aos vanguardistas e aos visionários. Sempre
achei que a veia (assumidamente comunista
e de esquerda) continha uma sabedoria rara. Sempre achei que as críticas
que tantas vezes ouvimos são constructo de pessoas que nunca se deram ao real
trabalho de abrir uma das obras para a ler. Prova disso, se me perguntarem, é o
facto de continuarem a dizer que Saramago escreve sem pontuação... e ainda
espero encontrar esse livro sem pontos e vírgulas, que tanto criticam... o que
tenho encontrado são livros com pontuação não convencional, que seguem o ritmo
e a lógica do pensamento... e talvez por isso causem estranheza e incómodo a
quem não pensa.
Tendendo a concordar com Saramago e, ainda que seja capaz de acompanhar a ideia e de entender por que o diz, esta frase deixou-me desconfortável. Deixou-me desconfortável, talvez, porque a minha noção de felicidade não existe desligada do outro, mas ancorada nele. Não é egoísta, está longe de ser incompatível com a luta, com a indignação, com Abril.
Nascida na Jangada de Pedra que anda por aí à deriva, sinto-me já afastada até dos espanhóis, que pertencem à Península, mas não à náusea cívica que veio substituir as noções de cidadania. As circunstâncias remetem-me para outras narrativas, mais dantescas e miseráveis. Lá fora, o ódio cospe-se em horário nobre e gente dorme na rua. A caixinha mágica mostra-nos gente que morre. Crianças que morrem. Bebés que morrem. Fome. Miséria. Guerra. Genocídio. A indignação e a luta dissipam-se na inexistência. Assim como a harmonia e a felicidade. Mas recuso-me a pensar que a felicidade é egoísta.
Recordo a frase da série After Life, de Ricky Gervais. Esse pedaço – talvez mainstream – de existencialismo episódico traz consigo pérolas de sabedoria. È Anne, uma viúva que encontramos num banco de cemitério, que nos leva à vida, dizendo “A felicidade é incrível, tão incrível que não importa se é nossa ou não. É algo maravilhoso. Uma sociedade cresce bem quando um homem velho planta uma árvore à sombra da qual sabe que nunca se sentará. Boas pessoas fazem coisas para outras pessoas. É apenas isso. Fim.”.
Gosto desta perspetiva de felicidade. Esta que não é egoísta, nem incompatível com a luta. Esta que pode exigir que se pense no outro. Que se lute. É assim que quero ser feliz... e sabem os deuses que não espero o sobejar de harmonia nesse caminho.
Talvez seja isso. Talvez importasse pensar a felicidade como um produto simbiótico. Algo que só posso ter, dando-me. Algo que só posso querer para mim, se quiser para todos os outros. Faz falta que se alimente a felicidade. Pela manhã, como quem põe ração ao gato. Pelo dia, como quem concede esmola ao sem abrigo. Pela noite, como quem beija os filhos na testa e lhes ajeita as mantas, depois de uma história de encantar.
Saramago também disse "Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo." Com isto, eu concordo. Mas recuso-me a acreditar que tenha de ser assim.
Peço que me perdoem. Tanto de bom já foi dito, antes que eu aprendesse a juntar as letras para formar palavras, que hoje sinto mais falta das palavras dos outros. Salto da literatura para o palco. Despeço-me nas palavras de Raul Solnado: “Façam o favor de serem felizes”.
Mas acrescento, do meu coração.
“Para os outros, pelos outros... e lutando para que todos encontremos uma felicidade igual.”
Todos. Mesmo aquela pessoa de quem não gostam. Mesmo os palestinianos e os israelitas. Mesmo quem foi votar e deixou o cérebro em casa. Se toda a gente for feliz, para quê a guerra? Se toda a gente for feliz, para quê a maldade? Se toda a gente for feliz, o mundo será melhor. Desculpa, Saramago... Não há pensamento menos egoísta!
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