terça-feira, 26 de agosto de 2025

A escola

 

Imagem retirada do Pixabay

Quando eu andava no colégio, aprendemos a relacionar a Irmã Bom Pastor mais com os doces do que com as hóstias. A simpática freira vestia sempre um sorriso juntamente com o hábito e ganhava a simpatia de todos com facilidade, falando mais da Terra do que do Céu, e mais da culinária do que de Deus. Ninguém duvida que acreditasse num senhor-com-maiúscula, nem que orasse ou se confessasse regularmente. Mas, talvez por ser criança, lembro-me mais dela na cozinha do que na capela. Tinha mão de anjo para a gastronomia. Operava milagres diversos, incluindo o da multiplicação de crianças na fila do recreio para os bolinhos ainda mornos, sendo o bolo de chocolate um dos favoritos, vendido na salinha debaixo das escadas, junto à copa.

Chegada a nossa vez e oferecidos alguns escudos, escutávamos a pergunta com ou sem açúcar. E não, não era sobre a confeção do bolinho de chocolate que se falava – que tinha açúcar era certo - mas sobre o açúcar branco refinado que, a gosto, punham ou não sobre o mesmo.

 

Hoje, seria impensável dar a uma criança – ou até vender numa escola – os bolos da Irmã Bom Pastor. Para começar porque trouxe do colégio um texto mais importante do que qualquer evangelho – a receita do bolo – e sei bem a quantidade de açúcar que leva, a medida do óleo e como pode ofender todos os que não podem e não querem consumir glúten. E, depois, porque a lei, entretanto, fez questão de aplicar normas muito estritas sobre os produtos que podem ser vendidos, e duvido que as delícias caseiras de uma simpática idosa seguissem todos os padrões exigidos pela brigada do saudável.

 

Hoje fiz esse bolo. Partilhei-o com quem, como eu, ignora as normas e restrições que o mundo tem vindo a impor de forma exponencial e hostil. Ainda há pouco, apeteceu-me uma fatia, que aqueci e cobri de açúcar, buscando na memória o sorriso doce da senhora de hábito que, por hábito, frequentava a copa. O chocolate misturou-se com o açúcar e colou-me perguntas aos dentes. Perguntas sobre a razão que nos leva a negar deliciosos prazeres às crianças, para evitar que sofram de diabetes, mas continuamos a dar-lhes um mundo que lhes confere stress, ansiedade, depressão, burnout, distúrbios do sono, distúrbios alimentares, dependência digital e, em muitos casos, vontade de não estar vivo... Parece que, de súbito, se serve apenas uma saudável falta de futuro nas escolas.

 

Devia ir lavar os dentes. O açúcar faz cáries e as perguntas fazem azia. Não entendo nada disto. Mas, mais uma vez, quando eu andava no colégio também se ensinava a desenhar e não a desdenhar... e... olhemos o mundo!


Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com


 



terça-feira, 19 de agosto de 2025

Dilúvio

 

Imagem gerada por IA

Os meus olhos choveram. Abri a barragem que travava as nuvens da alma. Então, os meus olhos choveram. Choveram como chove a chuva quando cai, sem se importar com quem vê, embora eu me importasse. O meu rosto ganhou fios negros, maquilhagem escorrendo em finas cascatas negras de tristeza. E, fazendo o gesto de quem pretendia limpá-las, a voz disse: é a maneira como anda o mundo, não é?

 

Incêndios que consomem florestas. Pessoas bombardeadas por mísseis e fome. Direitos que se perdem. Gente que vive sem teto. Gente que tem os filhos arrancados dos braços. Doenças que comem até o osso da esperança. Palavras de ódio gravadas nas paredes. Ameaças. Almas baleadas sem razão aparente. Lares que amolam vidas até que sucumbam. Preconceito que se estende e espalha. Alheamento e desistência. Mares que deixam pessoas doentes. Negociações nas mãos manipuladoras dos fidalgos. Mais uma mulher assediada, violada, morta na esquina da vida. O enterro da arte e da cultura às cinco da tarde, com missa de corpo presente à meia-noite no santuário da desventura.

 

Fazendo o gesto de quem pretendia limpar as lágrimas, a voz disse: é a maneira como anda o mundo, não é? Mas tudo isto me correu a mente. E eu afastei o rosto porque não o quero limpo. Porque estou farta da maquilhagem. Porque estou falta da secura da abstração e do teatro diário, com paredes aplaudindo o hercúleo sorriso. A pergunta. Tão honesta, tão sensível. A pergunta. Tão compreensiva e abnegada. A pergunta. Humilhando-me. Como gostaria que fosse o mundo, que não fosse egoísta, que não fosse pena de mim...

 

Incêndios que me consomem. Eu, bombardeada por ideias que não são míssil nem fome. Eu, e os direitos que vou perdendo. Eu e o teto com as suas rachas. Eu, com o futuro arrancado dos braços. Eu e o osso da esperança roído. Eu, e as palavras de ódio que gravo nas minhas próprias paredes interiores. Ameaças. Alma baleada sem razão aparente. Vida amolada até sucumbir. Preconceito, alheamento e desistência. Mares que, distantes, que me adoecem. Negociações nas mãos manipuladoras dos outros. Ser mulher sem esquina em que me matem. Ver o enterro da arte e da cultura às cinco da tarde, com missa de corpo presente à meia-noite no santuário da desventura.

 

Percebo que vejo o mundo do meu centro. Que sou o centro do mundo. Que sou o mundo. A árvore arde e eu ardo com ela. O bombeiro morre e eu morro com ele. A pobreza alastra e eu alastro nesse rio de mágoas. E sou tão egoísta que me choro – a mim – em cada coisa.

 

Por favor, acusem-me deste egotismo! Perguntem-me: é a maneira como anda o mundo, não é? Permitam que eu saiba que sou só mais um bicho saído da caixa de Pandora. Mas, peço-vos. Por tudo o que seja sagrado para vós... não tentem limpar-me o rosto. Não ousem limpar-me as lágrimas.

 

Levem a mão à vossa própria face. Ainda está seca? Porquê?


Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com


 



terça-feira, 12 de agosto de 2025

Rebobinando

 

Imagem gerada por IA


"E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará."
— João 8:32

 

 

A verdade que liberta é a mesma que prende. É isto que deveriam dizer-nos, antes de nos ensinarem a dizer verdades como se elas fossem inócuas. Não são. A verdade fere. A verdade repele. Em alguns casos, a verdade assusta, a verdade agride, a verdade mata.

 

Escreve-vos, portanto, um morto. Não é um morto diferente da bruxa que ardeu na fogueira. Não é um morto diferente daquele que perdeu a cabeça no cepo da não negação. É um morto que morreu, tendo por carrasco a palavra que podia ter sido calada ou pintada de tonalidades brandas. Este morto respira. Apenas isso o separa das cinzas e da cabeça decepada. A sua sepultura é apartamento. Sua. Está calor neste inferno. Desculpem.

 

Despida até de batismo, me vou alongando pela memória da verdade que me talhou os dias e me faz gente. Tudo em mim é demais. Dizer-me aos outros é rasgar-lhes intento. Calar-me pelos outros é negar-me. Fico no espaço confinado entre o que quero dizer e não devo, o que posso dizer e não digo, o que ouvem e eu não disse. O resultado é sempre o mesmo eco. O eco do silêncio. Embatendo nas paredes e voltando, perfurando-me como bala.

 

A verdade é que todos os dias há gente que nasce. Todos os dias há gente que ri. Todos os dias há gente que faz plano de ser feliz para sempre. E todos os dias há gente que morre. Todos os dias há gente que chora. Todos os dias há gente que vê malogrado o plano de ser feliz para sempre. É a fome. É a guerra. É o desamor. É a filha da puta da mentira a passar a perna a todas as alegadas verdades.

 

Vou dizendo a mim mesma que o mundo me está a deixar louca. Que o mundo louco me está a deixar louca. Que o louco mundo louco me está a deixar louca. Que o louco mundo louco me está a deixar loucamente louca. A verdade vos libertará. João era louco como o mundo louco. João era louco como eu.

 

Aqui estou, acorrentada à verdade que libertei. E ela é livre. E eu estou encarcerada entre paredes. De cimento. De silêncio. De realismo duro. Talvez lhe pendure um quadro cheio de sorrisos. Sorrisos feitos para o disparo da máquina. Porque é que sorrimos sempre que alguém dispara?

 

Vou rebobinar. Fazer um filme mudo. O mundo é louco. A verdade assusta, a verdade agride, a verdade mata. Vou rebobinar. Amanhã estaremos todos vivos.


Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com


 


terça-feira, 5 de agosto de 2025

Dá-me crédito

 

Imagem gerada por IA


A senhora, por acaso, não tem um minuto que me dispense para lhe dizer como podemos ajudá-la a lixar um bocadinho mais a sua vida? Tenho a certeza (quase) absoluta de que não foi isto que o homem sorridente e elegantemente vestido que se dirigiu a mim disse. Mas foi como se o dissesse. Foi como se o ouvisse. E, mesmo que ele não o tenha dito e eu não o tenha ouvido, era exatamente isto que estava contido nas entrelinhas do que ficou por dizer.

 

Ele quer atirar-me números à cara. Sabe que se começar o discurso de forma personalizada. O que faz, se não me for indiscrição? Uma palavra puxando a outra, se assim fosse permitido. Chegaríamos à pergunta – hoje afirmação – sobre se não me faziam jeito mais uns milhares de euros imediatos. Quem – por favor digam-me – é que não sente falta de ter mais um zero ou dois na conta bancária, neste país onde os salários são baixos e tudo – impostos, rendas, compras – é caro? O engodo estaria lançado. Logo ali. É com alguma aversão e preconceito que olho para ele e respondo um não muito seco logo que me diz boa tarde. Tento perdoar-me pelo asco imenso que sinto por aquele ser humano, recordando-me de que não é ele, mas a marca por detrás dele, que me enoja. Talvez tenha filhos para criar e não tenha arranjado outro emprego. Digo isto a mim própria, sentindo-me envergonhada comigo mesma por ser tão imediatamente repelida pela ideia de lhe responder, como faria com qualquer outra pessoa, um boa tarde simpático. Mas a moralista em mim vem à tona, sou o azeite desta água, e não sei se haveria alguma circunstância que me fizesse aceitar aquele emprego...

 

Crédito é uma palavra que me arrepia. Arrepia-me porque, em 2023, o mundo atingiu uma dívida recorde de 300 triliões de dólares. Arrepia-me porque existe mais dívida do que dinheiro no mundo. Arrepia-me porque o sobreendividamento gera problemas sérios de saúde mental e é uma das causas frequentes de suicídio. Arrepia-me porque é um jogo em cadeia: fazer dívida, fazer crédito para saldar dívida, ter dívida, fazer crédito... São centenas de milhões de pessoas nesta situação. Pessoas frágeis, que procuram solução em qualquer canto... até nas vozes simpáticas dos senhores que as abordam em centros comerciais. Suspiro. Sinto-me feia por responder mal ao funcionário que, provavelmente, receberá apenas comissões mal pagas pelos seus serviços. Ele nada mais é do que o carrasco pobre, erguendo e baixando o machado nos pescoços dos outros pobres. Mas irrito-me porque a abordagem é invasiva, é insistente, é agressiva.

 

Entre 1971 e 2010 basicamente todos os países proibiram a publicidade ao tabaco, quer nos meios de comunicação como em espaços públicos. A saúde pública, o custo social e económico e a proteção dos jovens foram razão suficiente para que as legislações restritivas entrassem em vigor, ainda que sobrasse espaço para alguns geniais momentos de marketing, como o da Camel, que lançaria o seu mítico outdoor Não fume! Nem mesmo Camel. Como é que, em 2025, os países apenas regulam a publicidade ao crédito, exigindo as famosas letrinhas pequenas do TAEG e afins, mas continuando a permitir que se coloquem bancazinhas de persuasão no caminho das pessoas? E sim, já me disseram que não é a mesma coisa, que o tabaco mata. Vamos, então, a números: mundialmente cerca de 13% dos endividados tenta suicidar-se, 12% assumem pensar nisso e 21% dos endividados em situação grave morrem por suicídio.

 

O crédito servido nos corredores dos shoppings é o chocolate cuidadosamente colocado nas linhas de caixas dos supermercados, para aliciar as crianças. Não sou contra o chocolate. Quem tem vontade ou necessidade de chocolate pode dirigir-se ao corredor dos doces para o ir buscar. Quem precisa do crédito não deixará de procurá-lo. Mas é horrível estar a vender uma religiosa salvação onde apenas existe um novo problema.

 

Continuo a andar, deixando para trás o homem a falar sozinho. Levo comigo um peso extra. Gostaria de saber explicar melhor. Vou-me perguntando. Como é que, no meio de tanta proibição estúpida, a publicidade ao crédito ainda é permitida?

 

Uma resposta incomodativa surge na minha mente. Talvez seja conveniente para alguns. Talvez, para o sistema, um pobre morto valha mais.


Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com