A dualidade da vida é, talvez, um pouco mais simples do que
as linhas pardas com as quais tentam pintá-la. Pisando as pedras do chão, em
desenhos brancos e negros, sinto-me criança outra vez. Saltando, de desenho em
desenho. “E quem pisar as brancas, morre.”.
“A miúda vai cair”.
Ainda soam as palavras. De alguém. Que, indo atrás de mim ou
à minha frente, não saltava as pedras. Morria. Nas brancas. Sem arriscar os
saltos. Julgando-me, talvez, infantil e idiota por insistir numa brincadeira de
quilómetros. E julgando sempre que acabaria ferida, de rojo no chão, com os
joelhos esfolados. Por não andar. De uma forma normal. Como os outros.
Mas andar como os outros sempre me pareceu pouco. Porque os
passos que dão são sisudos e fechados em si mesmos. Não contam. Assentam-se no
desejo do destino. E a meta é só lá à frente. Por vezes nem chega. Anda, também
em passos “normais”, ao mesmo ritmo daqueles que acham que o caminho importa
pouco.
A dualidade da vida é bastante simples: molda-se entre a
falta e o excesso. E nas críticas daqueles que têm falta sobre aqueles que têm
excesso. E nas críticas daqueles que têm excesso sobre aqueles que têm falta. E
todos somos falta e excesso. Uns mais. Uns menos. Uns numas coisas. Outros
noutras. Somos todos dualidade, embora nem todos sejamos vida.
Àqueles a quem falta o desejo de imaginar fossos no sítio
das pedras brancas, falta geralmente visão sobre o que acontece no mundo e fora
de si mesmos. E falta-lhes motivação para acordar. Razões para sorrir.
Esperança num universo mais justo. Falta-lhes um sorriso que se dê, vadio, nas
mesmas ruas onde caminham. Falta-lhes a loucura da decisão inesperada e do “é
agora ou nunca”. Falta-lhes a capacidade de esquecer o risco que se prende à
ação. Falta-lhes a vida que devia haver entre o berço e a sepultura.
Salto. De um desenho para o outro. Entre um desenho e o
outro há pedras brancas. Mas imagino falésias que levam ao nada. E rodopio
sobre as pedras escuras, dançando o jogo da ilusão. Tenho, talvez, excessos. De
imaginação e sonhos e ilusões. Tardias e cândidas, fazendo de mim criança mesmo
quando os anos passam. Tenho excesso da menina que fui. Excesso dos seus
cabelos encaracolados e da sua timidez morta em cânticos à lua pelas ruas da
cidade. Excesso de palavras presas, que criam mundos na minha cabeça, meio
loucos, meio díspares, todos feitos de uma alucinação presente.
E sei que vou morrer. Tenho excesso desta certeza. E, talvez
porque a tenho, em excesso, não me assusta a ideia da morte. É apenas pisar as
pedras brancas do caminho. E a meta é essa.
Não tenho medo da morte, nem dos excessos. Sinto que posso
viver nessa overdose de sentimentos e sonhos, de forma segura e eterna. Serei
sempre princesa no meu tempo que não envelhece, de asas fechadas sobre as
costas onde nascem luas e elementos feitos a tinta. Salto.
Quem pisar as brancas morre. Toda a gente morre. Mas alguns
morrem de falta. Pisando as pedras brancas.
Eu não. Eu piso as pretas. Vou. Vou de excessos e rumo aos
excessos. Também vou morrer. Quero morrer. A eternidade assusta-me. Mas, quando
morrer, quero que seja de overdose de vida.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Que nunca tenhamos medo de pisar as brancas e todas as outras.
ResponderEliminarRetiro uma frase que me disse muito "Mas andar como os outros sempre me pareceu pouco."
Todo o texto é sublime! E a foto também. Parabéns a ambas! A minha admiração é imensa!