Visto-me de negro para negar a morte no meu reino de caos. E
sigo os passos da sombra para honrar o sol do meu mundo de ocaso. Se me fazem
rainha do tempo, destruo os ponteiros. E a eternidade começa assim, no definhar
da vida que me fecha os olhos.
Sejam bem-vindos. É assim que cumprimento os espíritos dos
meus antepassados. Sentam-se comigo à mesa e comem da comida farta que lhes
oferto. Bebem do mesmo vinho que eu. E fingimos todos que não bebemos o sangue
do infortúnio que nos colocou um véu de invisibilidade.
Rimos de piadas óbvias e mórbidas, que alguém diz. E
esquecemos, por dois segundos, que distância entre mim e eles é a do corpo que
eu tenho e eles já não. Mas relembramos que somos pó. Mais ou menos compacto.
Sobre a terra ou sob ela. Alimentando raízes e encontrando espaços de sonho.
Conto-lhes que os meus dias são caminho para o sono eterno.
E eles contam-me que estão à minha espera, tentando tirar-me agruras do
caminho. Conto-lhes que tento dignificar os seus esforços de pão e labor, com
amplitudes mornas de esforço que os não suplantam. E agradeço. Porque, não
fossem eles, e eu não estaria aqui, sentada à mesa, a falar com as paredes e o
prato cheio que permanece em frente à cadeira onde se senta a memória de
alguém.
O que sobra da memória humana responde-me com um traço
saudoso de alívio quente por entre a noite fria. E imagino rostos que me
sorriem. E vozes que me prometem proteção e alento para os dias mais árduos.
Mas nem todos os que se sentam à mesa comigo esta noite têm rosto
de gente. Alguns têm bigodes e patinhas. Mau feitio, de pelo mais curto ou mais
longo, com ou menos trejeitos de donzela felina. Os seus nomes enunciam azar ou
realeza. E saúdo esses nomes com guloseimas. E uma festinha imaginária nas
cabeças.
Os dias que vivo, vivo-os porque alguém os viveu antes de
mim. E, neste dia que é de passagem, desvelo aos poucos a ideia dessa
eternidade de separação e sento-me com eles à mesa.
Sinto-os na minha pele porque os trago na minha pele. E no
meu sangue. E na minha memória. Atirados para as minhas veias por cada
batimento cardíaco. Sinto o sabor do mel nas palavras que sei que ouvem. E um
travo de whisky envelhecido. E um toque de mousse de chocolate. E um ronronar
distante na ideia da saqueta azul.
São os que me fizeram quem sou. E é por eles que me visto de
negro e nego a morte. Porque não morre jamais o que permanece vivo na memória.
Bebo um travo agridoce de saudade nesta noite. Saúdo os meus
ancestrais e sento-me com eles à mesa.
Há afeição servida nos pratos de todos nós. E vinho tinto
nos cálices. E mãos dadas na invisibilidade dos corpos. Sinto-os em mim. E sou
deles. Mais uma vez.
Visto-me de negro. Nego a morte. Faço um brinde. A todos
eles. A quem foi para que eu viesse a ser e a quem me fez ser o que hoje sou.
Estamos todos vivos esta noite. Estaremos todos vivos enquanto houver mesa
posta a preceito. E uma vela acesa. E uma memória em chama. E um copo de vinho.
E amor.
Se a donzela da primavera pode ser rainha do submundo por
seis bagos de romã, eu posso ser anfitriã de quem amo por uma noite, trajando
negro e negando a morte.
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