Ouvia-se a voz dela a meio quilómetro de distância. Cada
frase pontuada no seu começo por um “eh”, orgulhosamente lançado por entre
olheiras e sardinhas do sol, que se esqueciam nos traços sempre ténues e mornos
do sorriso. No sorriso dela, era sempre Verão. Ainda que nevasse. E os olhos se
entristecessem atrás de cortinas de tempestade. E havia um tom meio estridente,
meio orado, nas palavras que se diziam, gritadas e omnipresentes, como se a
própria Terra chamasse.
Não faltavam, nunca, no tom das ondas sonoras da sua voz,
palavras de conforto e de crítica. Mulher de semblante franzino e humilde, ela
trazia até ao público (geral ou particular, conforme calhava) uma cegarrega de
ideologias pacatas, que tanto ofendiam como incentivavam mas que, duras ou suaves,
retratavam sempre a crença que ela trazia no peito. Não tinha “papas na
língua”. Mas tinha sempre o abraço pronto no fim, se fosse preciso amarrar as
feridas abertas por verdades inusitadas com um pouco de calor e de amabilidade.
Dos filhos – dois – fazia o mundo. Deles, falava com orgulho
e devoção. Contando traços superficiais de dificuldades que todos sabíamos mais
profundas e mais caóticas, insistia no futuro como um espaço de realização e
nunca deixava de lado o orgulho para lhes mencionar os feitos, fossem grandes
ou pequenos. Os filhos não eram apenas os seus heróis. Eram a sua religião, a
sua alegoria, a sua força vital. Neles se sustentava e por eles se fazia como
era. Mulher simples e forte, sempre com um sorriso.
Era uma boa amiga. Até de quem, tão evidentemente, não era
amigo dela. Até de quem, por ditos e desditos, lhe fazia a vida da cor das
olheiras. Largava tudo para ajudar os outros. Prejudicava-se para ajudar os
outros. Parava, quando perguntava se os outros estavam bem. E queria ouvir a
resposta. Não lhe faltavam, nos meandros da voz e da fé, palavras de alento
sobre um amanhã melhor. E havia tanto de vida nela que, por entre a depressão
dos dias, quase nos sentíamos forçados a concordar que amanhã ia ficar tudo
bem.
Ia ficar tudo bem. Mas nem sempre ficava. E notava-se nela
um traço de irritação latente com as injustiças do mundo. De duas coisas, ela
não gostava! Injustiça e arroz de tomate com pimentos. E dizia-o, de uma forma
muito própria, que trazia mensagens de choro enquanto nos despoletava o riso.
Helena de nome e Dona Lena nos traços mais jovens da minha
voz, ela insistiu sempre na receita que eu, igualmente teimosa, insisti em
nunca seguir: “Dona não”. Não lhe chamava só Lena. E ela não gostava disso. E
eu, que sabia que ela não gostava, lá ia fazendo mousse de chocolate, para me
retratar desta falha, que era frequente mas nunca por desrespeito ou
desatenção.
Um dos companheiros dela era o cigarro. E as piadas sobre a
morte quando alguém lhe dizia que não fumasse, ditas de forma tão leviana,
tinham graça na altura. Agora já não. Tinham piada enquanto a voz dela se ouvia
a meio quilómetro de distância. E enquanto falava dos filhos, sentada na mesa
de jardim. E enquanto reclamava das fotos do meu ex-namorado, fixadas na parede
durante mais de seis anos. E enquanto reclamava da mousse de chocolate que lhe
apetecia e já não comia há muito tempo. Nessa altura, as piadas tinham graça
porque a morte era um pesadelo muito distante e uma imagem desfeita no fumo da
possibilidade inconcreta. Mas um dos companheiros do cigarro era a doença. E um
dos companheiros da doença era a morte.
Sem voz estridente e pontuada com “ehs” no começo da frase,
sinto uma espécie de vazio onde havia riso e vontade de dizer, como antes
disse, que gosto dela. É uma falta que começa a tomar forma quando a vida se
apaga, como uma beata, no cinzeiro do mundo. Quando tudo o que resta é um
espaço vazio na mesa e um espaço cheio no coração.
Com dificuldade e pela primeira vez, tento honrar o pedido
que me fez e pensar nela como a Lena (sem dona). Nas suas olheiras e nas
sardinhas do sol, que se esqueciam nos traços sempre ténues e mornos do
sorriso. Nas palavras, duras ou suaves, mas que retratavam sempre a crença que
ela trazia no peito. Na amiga que largava tudo para ajudar os outros. E consigo
fazê-lo. Pela primeira vez. Porque a Lena era o conforto de um “tu” sempre
presente. Foi assim que se marcou nos outros. É assim que permanece. E é assim
que, mesmo depois da noite mais fria ter caído nos seus olhos e temperado os
nossos com água e sal, continuará a viver em cada um de nós para nos fazer
acreditar que amanhã vai ficar tudo bem.
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Adorei era essa Lena que eu conhecia bjs !!
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