Adio assim a morte. Com poemas. Adio. A morte. Como se
dissesse ao corpo. Espera. Dá lá mais dois batimentos cardíacos. E espera mais
um bocadinho. Que eu ainda tenho um romance para acabar.
Adio a morte a olhar para as nossas fotografias antigas.
Adio. A morte. Digo-lhe. Vem cá, olha. E enquanto vemos as fotografias, ela
distrai-se e esquece-se de que tem de me levar. Passo-lhe os álbuns para as
mãos ossudas. É engraçado ver a morte a folhear páginas de amor, com uma
expressão esbugalhada nos olhos que não tem. E fingindo que não chora sem
lágrimas. Ao lembrar que nos matou antes de me matar. E que está a esquecer-se
de me matar porque nos matou.
Adio a morte. Uma espécie de penitência. Obrigo-me a adiar a
morte. E quão estranho é que se adie o que se deseja. Mas adio. De pés no mar.
Adio a morte, enquanto ela continua a deambular pelo meu passado, sem perceber
muito bem como pôde matar-me antes de me parar o coração.
E ela diz-me. Não estás viva. Não estou. Não estás viva mas
respiras. Respiro. Vem. Não vou.
E continuamos nesta discussão porque eu não posso morrer.
Explico que essa é a minha condenação. E que a condição é esta. Atiro-me aos
seus braços num segundo. Mas só depois. Só depois de terminar esse romance que
ainda quero escrever. E só quando os olhos cansados e vividos, negros e ternos
de uma anciã não forem chorar lágrimas por mim plantadas.
Adio assim a morte. Com amor. Adio. A morte. Como se
dissesse aos dias que passam que o calendário ainda tem mais tormentas para me
infligir. Olha: ainda não passei fome. Olha: ainda não fui à guerra. Olha:
ainda não rasguei a pele nos sulfatos de ansiedade das escarpas poentes.
Nunca ninguém enganou a morte. E, por isso, ela não se
apercebe dos enganos na minha voz e continua. Continua a folhear o álbum da história
que eu conto em palavras no romance. Cada vez que termina, recomeça, à procura
do que ficou por matar.
E ela diz-me. O amor está vivo. Está. Está vivo mas acabou.
Acabou. Vem. Não posso.
De tão infrutífera, esta discussão ganha teias de aranha. À
noite, cansadas de discutir, eu encosto a cabeça no ombro da morte e vemos
juntas passar esse filme sobre tudo o que a minha vida podia ter sido e não
foi.
Há lágrimas nos meus olhos e ar nos dela. Eu assoo o nariz e
ela relembra o nariz que não tem. Esconde o rosto no manto e rimos as duas.
Porque somos eternamente fãs uma da outra e sabemos que só nos temos uma à outra nestas
noites frias, onde as fotografias se esquecem e os astros se alinham.
Ela diz-me. Amo-te. Também te amo. Este amor não é o teu
maior amor. Talvez seja. Vem. Não, ainda não.
Adio a morte. Com um desprendimento pela vida. E coloco as
mãos ao redor de canetas que são histórias e sonhos. Porque sinto culpa no
peito, algures entre as costelas e os pulmões. O meu coração é rasgado e
trucidado por metralhadoras sem balas. Palavras. Bang. Palavras e mais
palavras. Rasgões que também são fotografias de olhos claros.
Ela diz-me. Um dia vens. Vou. Agora? Não. Quando? Quando o
romance tiver terminado e a fotografia estiver baça. Quando a esperança se for?
Já foi.
Ela parece triste. Triste por ter morto amores e esperanças.
E eu abraço-a. Ela não está habituada a abraços. E foge, deixando aberta essa
porta feita de batimentos cardíacos.
É assim que eu adio a morte. Amando-a. E convidando-a para
que se sente no sofá e sinta. Plenamente. O peso de tudo o que já matou em mim.
A morte vem e volta a partir. Adio a morte. Adio-a, mostrando
que a quero. E ela quer que a queira. Mas está a ter dificuldade em encontrar a
parte de mim que falta levar…
O meu favorito do ano! Adoro-o! Adoro-a! Adoro-te!
ResponderEliminarLindo texto, repleto tanto de beleza como de tristeza. Obrigado pela partilha.
ResponderEliminar