terça-feira, 3 de setembro de 2019

As feridas que ninguém vê


Fotografia de Analua Zoé 

As feridas que ninguém vê. Atadas com ligaduras firmes. Umas de pano. Umas de vento. Algumas de mentira suave - Estou bem. E tu? – As feridas que ninguém vê. E que tanta gente causa. E que tanta gente ignora. E que tanta gente critica.

Sim, eu sei. Devia provavelmente escondê-las, para que ninguém as visse. Ou esconder-me atrás delas, como tantos fazem. Ter, sobre elas, uma postura de vergonha ou de vitimização. Fingir que não as tenho ou reduzir-me a elas. Devia, em suma, ser os outros.

Eu percebo o desconforto que deve ser olhar para todas as minhas cicatrizes. Saber que algumas são fruto de feridas como as que ainda trago abertas e que outras sararam, sabe-se lá como, com água do mar e tempo. E encontrar, de permeio, as feridas que não saram. Como aquelas feitas de amor, num só corpo, abertas de dedos cravados na pele que hoje sangra lágrimas por dentro.

Não é difícil perceber. Causa desconforto. Um desconforto que se acentua porque eu não cubro as feridas e não me reduzo a elas. Porque as uso como brasão mas não como escudo. Porque as tomo por irmãs e não por escravas. Porque não tento evitar que vejam que sou imperfeita.

Tenho muitos defeitos. Defeitos que se acentuam pela magreza. Pela brancura. Pela sombra que coloca até o defeito que não há no espelho de mim. Pelo jeito socialmente desajustado. Pela testa franzida e os ossos salientes nos ombros. Pelas rugas teimosas entre os olhos. Olhos que tenho. E que não são cegos. E também vêem cada defeito de mim.

Eu vejo. Vejo mais. Vejo feridas. Vejo rugas. Vejo cicatrizes. Vejo a mancha permanente na mão direita. Vejo os traços tortos da tatuagem nas costas. Vejo os sinais que se amontoam junto ao pescoço. E vejo as estrias. E vejo as varizes. E vejo a flacidez quando o exercício se delega para amanhã, esquecido por entre o trabalho. E vejo a madeixa de brancos que surge na parte superior esquerda da nuca. Sim! Eu também sei. Eu também vejo. Os defeitos. As feridas que ninguém vê.

Mesmo assim. Com clareza de olhos que vêem, sinto-me capaz de amar. Amo cada uma das minhas imperfeições e cada um dos meus defeitos. Até aqueles que me fazem dar resposta a quem não merece resposta. Amo-os. Porque atrás delas. Das feridas que ninguém vê. Da pele branca. Do corpo magro. Atrás delas, a alma não está podre.

Eu tenho muitas feridas. Feridas que ninguém vê. Algumas delas são feias. Algumas delas são por dentro. Mas nenhuma delas é fermentada a maldade.

Deito-me ao lado das fontes e sei que, como a água, existe algo de permanentemente fluído, transparente e puro em mim. Mesmo que não se veja no meu corpo imperfeito e cheio de cicatrizes. E penso que talvez a pureza de mim derive justamente das imperfeições que me fazem monstro aos olhos alheios. Porque foram elas que me ensinaram que as nossas mãos, as nossas bocas, as nossas palavras nascem do alimento interino de nós e devem apoiar, elogiar, mimar os outros.

Prefiro ser quem chora a fazer chorar alguém. E dos poucos arrependimentos que trago é o de saber que nem sempre fui capaz de entender as feridas alheias. Dos poucos arrependimentos que trago é saber que, inadvertidamente, rasguei a pele de outras almas-água. Esta é uma das minhas feridas abertas. Que nunca sarou. Nem vai sarar.

As feridas que ninguém vê. Ato-as com ligaduras firmes. Umas de pano. Umas de vento. Algumas de mentira suave - Estou bem. E tu? – Algumas feitas de silêncio. Algumas feitas de resposta. Algumas feitas de eternidade.

Ato as minhas feridas. Dou nós lassos nas ligaduras que caem. Ato as feridas. Não as escondo. Não me escondo atrás delas. Deixo que se evidenciem. Ato-as só para que se prendam a mim e me deixem saber que não sou perfeita. E mostro-me. Com todos os meus defeitos.  Atrás das imperfeições - atrás delas - a alma não está podre.






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2 comentários:

  1. Amiga Marina Ferraz, alguém que assume as suas feridas, mesmo que ninguém as veja, tal como o faz com os seus defeitos, as suas imperfeições, nunca poderá ser alguém de alma podre, antes pelo contrário, tem de ser alguém de alma límpida. Beijinho

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  2. Desejaria eu que todas as tuas feridas se fechassem... mas a vida abre outras, mesmo ao lado das que teimam em não fechar... vou só arranjar linha e agulha para tu cozas as minhas e eu as tuas.

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