Fotografia de Analua Zoé
As feridas que ninguém vê. Atadas com ligaduras firmes. Umas
de pano. Umas de vento. Algumas de mentira suave - Estou bem. E tu? – As
feridas que ninguém vê. E que tanta gente causa. E que tanta gente ignora. E
que tanta gente critica.
Sim, eu sei. Devia provavelmente escondê-las, para que
ninguém as visse. Ou esconder-me atrás delas, como tantos fazem. Ter, sobre
elas, uma postura de vergonha ou de vitimização. Fingir que não as tenho ou
reduzir-me a elas. Devia, em suma, ser os outros.
Eu percebo o desconforto que deve ser olhar para todas as
minhas cicatrizes. Saber que algumas são fruto de feridas como as que ainda
trago abertas e que outras sararam, sabe-se lá como, com água do mar e tempo. E
encontrar, de permeio, as feridas que não saram. Como aquelas feitas de amor,
num só corpo, abertas de dedos cravados na pele que hoje sangra lágrimas por
dentro.
Não é difícil perceber. Causa desconforto. Um desconforto
que se acentua porque eu não cubro as feridas e não me reduzo a elas. Porque as
uso como brasão mas não como escudo. Porque as tomo por irmãs e não por
escravas. Porque não tento evitar que vejam que sou imperfeita.
Tenho muitos defeitos. Defeitos que se acentuam pela
magreza. Pela brancura. Pela sombra que coloca até o defeito que não há no
espelho de mim. Pelo jeito socialmente desajustado. Pela testa franzida e os
ossos salientes nos ombros. Pelas rugas teimosas entre os olhos. Olhos que
tenho. E que não são cegos. E também vêem cada defeito de mim.
Eu vejo. Vejo mais. Vejo feridas. Vejo rugas. Vejo
cicatrizes. Vejo a mancha permanente na mão direita. Vejo os traços tortos da
tatuagem nas costas. Vejo os sinais que se amontoam junto ao pescoço. E vejo as
estrias. E vejo as varizes. E vejo a flacidez quando o exercício se delega para
amanhã, esquecido por entre o trabalho. E vejo a madeixa de brancos que surge
na parte superior esquerda da nuca. Sim! Eu também sei. Eu também vejo. Os
defeitos. As feridas que ninguém vê.
Mesmo assim. Com clareza de olhos que vêem, sinto-me capaz
de amar. Amo cada uma das minhas imperfeições e cada um dos meus defeitos. Até
aqueles que me fazem dar resposta a quem não merece resposta. Amo-os. Porque
atrás delas. Das feridas que ninguém vê. Da pele branca. Do corpo magro. Atrás
delas, a alma não está podre.
Eu tenho muitas feridas. Feridas que ninguém vê. Algumas
delas são feias. Algumas delas são por dentro. Mas nenhuma delas é fermentada a
maldade.
Deito-me ao lado das fontes e sei que, como a água, existe
algo de permanentemente fluído, transparente e puro em mim. Mesmo que não se
veja no meu corpo imperfeito e cheio de cicatrizes. E penso que talvez a pureza
de mim derive justamente das imperfeições que me fazem monstro aos olhos
alheios. Porque foram elas que me ensinaram que as nossas mãos, as nossas bocas,
as nossas palavras nascem do alimento interino de nós e devem apoiar, elogiar,
mimar os outros.
Prefiro ser quem chora a fazer chorar alguém. E dos poucos
arrependimentos que trago é o de saber que nem sempre fui capaz de entender as
feridas alheias. Dos poucos arrependimentos que trago é saber que,
inadvertidamente, rasguei a pele de outras almas-água. Esta é uma das minhas
feridas abertas. Que nunca sarou. Nem vai sarar.
As feridas que ninguém vê. Ato-as com ligaduras firmes. Umas
de pano. Umas de vento. Algumas de mentira suave - Estou bem. E tu? – Algumas
feitas de silêncio. Algumas feitas de resposta. Algumas feitas de eternidade.
Ato as minhas feridas. Dou nós lassos nas ligaduras que
caem. Ato as feridas. Não as escondo. Não me escondo atrás delas. Deixo que se
evidenciem. Ato-as só para que se prendam a mim e me deixem saber que não sou
perfeita. E mostro-me. Com todos os meus defeitos. Atrás das imperfeições - atrás delas - a alma
não está podre.
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Amiga Marina Ferraz, alguém que assume as suas feridas, mesmo que ninguém as veja, tal como o faz com os seus defeitos, as suas imperfeições, nunca poderá ser alguém de alma podre, antes pelo contrário, tem de ser alguém de alma límpida. Beijinho
ResponderEliminarDesejaria eu que todas as tuas feridas se fechassem... mas a vida abre outras, mesmo ao lado das que teimam em não fechar... vou só arranjar linha e agulha para tu cozas as minhas e eu as tuas.
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