Autor da foto: Miguel Pião
Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém
que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.
Em cima dele, sou fénix. Renasço das cinzas de mim.
Mas, depois, subindo ao palco, ela percebia que não era
cinza. O linóleo debaixo dos pés ou a madeira envernizada. O subir de telas e
panos. O descer das luzes incandescentes nos olhos de brilho. O brilho que é
mais incandescente que as luzes que descem. E nas quais ondeiam pedaços de
poeira. Que não é cinza. Mas magia.
Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém
que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.
Em cima dele, sou deusa. Vivo de imortalidade.
Mas, depois, chegando até ao microfone. Fazendo com ele uma
dança de pares, onde os beijos de língua eram palavras. Sentindo a obscenidade
no toque plástico na mão, quando o retirava do tripé, ela não se sentia
imortal. Sentia que ia morrer. Ali. Que podia morrer. Ali. Que nem sequer se
importava de morrer. Ali. E não havia imortalidade nas palavras ditas e
sonhadas, ainda que a poeira ondeante de sonhos parecesse parar os ponteiros.
Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém
que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.
Em cima dele, sou esperança e História. Vivo de amanhãs e de
anteontens.
Mas, depois, quando se movia, dançando, ela percebia que era
toda feita de “agoras”. De momentos que se principiavam, que terminavam, que se
sucediam. E aceitava a inevitabilidade do momento que já tinha sido ontem e já
tinha sido amanhã mas que, ali, era simplesmente um “já” repartido em memórias
concretas do segundo presente.
Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém
que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.
Em cima dele, não tenho género nem forma. Vivo sem
definições.
Mas, Deuses, subia ao palco e sentia-se mulher. Subia ao
palco e sentia-se bonita. Subia ao palco e sentia o exultar da feminilidade
pelos poros e por todos os orifícios, incluindo os que alguns considerariam
impuros. E não tinha vergonha do corpo nem pudores falsos. Tinha apenas vontade
de (se) viver. Vontade de aproveitar a sensualidade da psique. Como um desmaio
lúcido, no qual era gente.
Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém
que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.
Em cima dele, não sou eu. Vivo sem mim.
Mas era mentira. Porque ela avançava debaixo das luzes,
sedenta dos risos da plateia, sedenta dos olhares da plateia, sedenta das
palmas da plateia. E, por mais que se cobrisse de figurinos, despia-se da
muralha, despia-se da pele, despia-se da carne e punha ali – totalmente nua e
exposta – a alma.
Despida. Exposta. Desarmada. Ela procurava em si o texto.
Vomitava ali o texto. Rasgava ali o texto. Sempre de olhos saltitando, entre o
papel, a luxúria e a plateia, na qual persistentemente procurava algo. Alguém.
Talvez tu. Sim. Definitivamente tu. Porque ela se despia. De quase tudo. Mas
não de amor, porque era essa a essência da alma. E a essência era o que se via,
de pés nus no linóleo, debaixo das luzes, exultando a expressão mais louca do
ser.
Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém
que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir. Mas agora
não. Agora, não anui. Porque não concorda.
Em cima do palco, eu sou eu. É fora dele que não sei quem sou.
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Adoro odiar que a tua escrita se cruze com a minha. Fora isso... 3, 2, 1... SLAM!
ResponderEliminar"Como um aríete lírico subo ao palco
A honrar a escrita com a oralidade.
Os lábios soltam sopros poéticos,
As mãos tremem, mas não é nervosismo.
É da força das palavras que redigi,
Que bravas e imprudentes se atiram ao mundo."
M.H.