Não sei o que
está escrito na lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro.
Nós não fomos os
primeiros. Nunca. Ou quase nunca. Para ninguém. Mas também nunca nos importámos
muito com isso. Pelas primeiras páginas do livro sempre tivemos o sentimento
ambíguo de uma aventura que não sabíamos se podia ser boa, de uma narrativa
ainda comprometida com explicações e descrições demasiado extensas e quase
escusadas sobre um mundo que, tanto tu como eu, apreendíamos com facilidade e
sem palavras. Ainda que o nosso olhar sobre o mundo fosse distinto – o teu mais
prático e concreto, o meu mais intuitivo e onírico – não precisávamos do que
vinha nessas primeiras páginas que não éramos nem queríamos ser.
Apesar de nunca
sermos os primeiros, também foi raro que nos quedássemos no fim do que quer que
fosse. Se assim tivesse sido, talvez nos tivessem notado, em vez de
permanecermos invisíveis. Mas tínhamos – temos – uma alergia às conclusões. Não
gostamos quando acaba. Não gostamos da ideia de que acabe. Qualquer noção que
se confunda com o fim nos lembra inevitavelmente que quase todos os que por nós
passaram iam para lá: para o lugar onde chega o ponto final que remedeia tudo
com a desistência. Não somos de desistir. Se, em vez de página, fossemos autores
– e que ilusão é essa de criar algo, neste mundo onde tudo já existe –
escreveríamos até ao último suspiro uma história que nunca terminaria.
Tu eu sabemos
bem. As pessoas ligam mais à lombada. E eu não sei o que está escrito na
lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro. Nunca passam por
nós os olhos na decisão da demora. Perdem-se, talvez, na ilustração da capa; no
nome e na biografia desse autor que deve ser um Deus qualquer em que não
acreditamos. Espreitam a primeira página. Ou a última. Pousam o livro na
estante. Levam o livro da estante. Tanto faz. Levam ou deixam, sem saber que
existimos. Tu e eu. Nas páginas centrais do livro.
Somos
incrivelmente sós. Quem nos vê, rodeados de gente, não faz ideia. Mas tu és
incrivelmente só. E eu sou tão só como tu. E mais sozinha, às vezes.
Não sei o que
está escrito na lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro.
Tantas vezes a vida embateu sobre nós, deixando-nos no negrume de uma quase
inexistência. Tantas, tantas. Tantas, que julgámos que era porque não
toleravam. E talvez não tolerassem mesmo. É o lado mais triste de todas as
histórias, quando se chega a nós. Porque somos as páginas centrais de um livro.
Aqueles que gostam de ler irão encarar-nos como um indício do fim. Aqueles que
não gostam, irão ver-nos como marco de uma soma de páginas que nunca mais
terminam. Passam por nós reclamando que nunca mais chegam ou que chegaram
depressa demais. Passam por nós, numa reclamação frequente, constante, cheia de
amargura.
Nunca estivemos
noutro lugar e julgámos sempre que nos odiavam. Ali, nas páginas centrais de um
livro. Julgámos sempre que a vida era injusta por nos colocar justamente ali. No
centro desse livro, que sempre foi fechado de forma violenta e abrupta. Sem
cuidado nenhum, por todos os que queriam chegar à contracapa.
Nas páginas
centrais do livro, julgámos. Julgámos sempre que nos odiavam. As pessoas que
nos liam. As pessoas que protestavam. O Deus no qual não acreditamos e que
deve ser autor da história desse livro, do qual desconheço inscrições de
lombada. Julgámos. Estávamos errados. Mas julgámos. E percebemos, mais tarde,
que tudo era para que pudéssemos estar juntos na escuridão. Folha sem corte, dobrada
e sobreposta na plenitude sem regras de duas páginas que se encontram uma sobre
a outra e são só uma.
E eu disse-te. Não sei o que está escrito na lombada. Mas
sei. Sei que somos as páginas centrais do livro.
E tu respondeste.
Não sei o que está escrito na lombada.
Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro.
E as páginas
centrais do livro eram uma folha só. E a solidão a dois era mais fácil.
Principalmente por sermos um.
Quando finalmente
nos apercebemos de que éramos uma folha só, pensámos que podíamos sorrir. Mas
alguém chegou. A essa folha dobrada ao meio, que era o centro do livro, no
centro do mundo. Foi maldade? Foi destino? Não importa! Deixaram o livro
aberto. E, na luz, somos duas páginas separadas ao sol. A vida - novamente
injusta – punha-nos, sem razão, sabendo que éramos um, no centro desse livro,
agora aberto. E a escuridão era, talvez, o único lugar onde podíamos estar
juntos.
Esperamos a
noite. Ou que mãos caridosas fechem o livro outra vez. Mas demora. E dói. O sol
cria lágrimas nos olhos. Sei que estás aí. Sinto que estás aí. És parte de mim
e não te vejo. O sol cega.
Não sei o que
está escrito na lombada. Nem interessa. Mas sei. Sei que somos as páginas
centrais do livro. Alguém o feche de vez, por favor. Não quero saber como
acaba. Não quero que acabe. Quero-te.
Lindo!
ResponderEliminarParabéns.