terça-feira, 15 de setembro de 2020

A passadeira do ginásio

 


Aumenta velocidade. Aumenta inclinação. Anda. Aumenta velocidade. Anda. Mais depressa. Aumenta velocidade. Corre. Reduz velocidade. Anda depressa. Entra na recuperação. Abranda. Pára. Parabéns.

 

Deves estar a fazer algo certo. O coração bate no peito. Ainda estás viva. Estás a tentar ser o teu melhor eu. O coração bate no peito. Deves estar a fazer algo certo. Deves estar.

 

Ignoro os meus pensamentos para tentar ouvi-la. Sei que a passadeira do ginásio tem voz. A maior parte das pessoas não a ouve – e muitas vezes eu também não - porque a música está alta e o burburinho distrai. Mas ela tem voz. Deve ter. Para nos ir motivando com os seus numerozinhos, que avançam lentos, como se dissesse que hoje é dia de fazer melhor do que ontem. Queremos fazer melhor do que ontem. Então, se estivermos atentos, conseguimos ouvi-la a insistir para corrermos mais um minuto, para aumentarmos mais a inclinação do tapete, para voltarmos no dia a seguir.

 

Claro que é um ser estático e inanimado. E que não fala. Mas é como se falasse. Na minha cabeça, tem todo um discurso político enraizado na utilidade que pratica, recorrendo a toda a sua diligência para nos recordar que se encontra num patamar entre um aparelho clínico e um instrumento de tortura. E que devíamos. Devíamos mesmo. Fazer melhor do que ontem.

 

Desengane-se quem acha que isto é conversa motivacional. Ela não está a tentar enaltecer o “eu” que chega amanhã mas vexar o “eu” que hoje a pisa. Faz isso comigo, que pareço uma barata tonta quando corro mais do que um minuto, e com o atleta olímpico que depois de correr vinte minutos seguidos e sem ficar ofegante, ainda abana a cabeça aos resultados que vê.

 

Seja como for, os insultos da passadeira são o que, dela, menos me incomoda. Incomoda-me nela a similitude que tem com a vida.

 

Aumenta velocidade. Aumenta inclinação. Anda. Aumenta velocidade. Anda. Mais depressa. Aumenta velocidade. Corre. Reduz velocidade. Anda depressa. Entra na recuperação. Abranda. Pára. Parabéns. Não foste a lado nenhum.

 

Sim, a passadeira do ginásio é muito parecida com a minha vida. Que me deixa com dores nos músculos. Ora nos gémeos, ora nos glúteos, ora no coração. Tenho, com ambas, uma eterna relação de amor-ódio.

 

Mas nem é a dor que incomoda. No ginásio e na vida, se não doer nada, estás a fazer algo errado. Incomoda-me o andar sem que importe o nível de esforço, a velocidade ou quanto de mim ficou, em suor ou lágrimas. Incomoda-me que não importem as mil tentativas para ser melhor. Incomoda que tudo seja para descobrir que (já) não é o esforço que gera sucesso. Incomoda que, no fim, o ponto de chegada seja o ponto de partida.

 

Comento a dor. A residual, que fica depois. Da passadeira, isto é. Nunca ninguém fala verdadeiramente na dor residual da vida. Respondem-me que, com o tempo, nos habituamos. Sobre a passadeira. Nunca ninguém responderia desta forma para falar da vida. Falar assim da vida também dói. Evitam-se essas segundas dores como, por vezes, os alongamentos.

 

Já aumentei velocidade. A inclinação. Andei. Corri. Reduzi velocidade. Andei depressa. Recuperei. Abrandei. Parei. Não fui a lado nenhum.

 

No fim, o facto é: a vida - essa passadeira que nos tortura e faz o coração bater mais forte - deixa mazelas e dor, sem nos deixar ir onde os sonhos vão. A corrida da vida cansa-me muitas vezes. Não sair do mesmo lugar cansa mais. E dói. Disse-me alguém que, com o tempo, nos habituamos…

 

Estou aqui. Repito a mim mesma: Ainda estou viva. Estou a tentar ser o meu melhor eu. E corro. Na passadeira e na vida. Até doer. Até me habituar à dor. De olhos postos num ponto além.

 

Preciso de me habituar.

E de tomar banho.





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