terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A forma de vos amar

 


Não é sempre, entendam. Não sou perfeita. Mas, na maioria dos dias, tento beber do que aprendi, sentada de pernas “à chinês” no chão de um templo budista. Amar – disseram-me lá – só tem valor assim, quando o Amor é Universal.

 

 

Acordo de manhã. O espaço que ocupo tem, muitas vezes, limites físicos e quentes. Toque de pelo e toque de pele. Carne, calor, afeição. Respirações mais ou menos pesadas. Acordo de manhã. Deposito festas e beijos e abraços, distribuindo-os e recebendo deles o retorno. Sorrio. Nem sempre por fora, já que o embalo da manhã nunca me é suave. Mas sorrio. Onde importa. Dentro. E penso: que boa maneira de acordar, que boa maneira de viver, que boa maneira de morrer um dia. Digo muitas palavras de Amor na minha cabeça. Não as digo porque – mulher de palavras – sei que elas cabem no silêncio dos gestos. Mas aproveito que elas me ocupem a mente e desejo. Fechando os olhos antes de me levantar. Que toda a gente possa conhecer a plenitude de acordar no espaço confinado entre corpo-de-gato e corpo-de-gente e sentir o calor da perfeição no peito.

 

Levanto-me. Faço uma espécie de romaria até à máquina. Vou com fé. Ao café. A luzinha amarela que pisca até dar origem ao verde é um cumprimento matinal que aprecio. O som da cápsula que rompe. O cheiro quente do líquido escuro. E o caminho que faz, na minha mão, até aos meus lábios. Há aquele momento. Aquele em que o café toca a língua. Aquele em que o café toca a alma. Aquele em que fecho os olhos e desejo. Novamente. Que toda a gente possa conhecer a plenitude do conforto dos pequenos rituais perfeitos.

 

Vou trabalhar. Ligo a Internet. Descubro que o emaranhado da véspera se soma a uma nova lista de prazos. Reclamo levemente de tudo o que é “para ontem”. Mas, depois de meia dúzia de impropérios ditos em surdina, lembro o caminho. Eu fui uma menina de 6 anos a desejar vir a ser o eu que eu sou aos 33. Agradeço brevemente. Essa possibilidade de o ser e todo o papel que cada uma das solicitações dos clientes tem para que eu possa sê-lo. Lanço-me ao teclado para escrever. Nos espaços entre as palavras, um desejo. Outro e o mesmo. Que toda a gente possa conhecer a plenitude do encontro consigo mesmo e com a concretização do sonho, mesmo que ele venha sob as formas mais estranhas.

 

Como. Faz parte dessa coisa de ser humana. Comer. Cozinho os pratos de que mais gosto ou peço Uber Eats. Não importa o que é a comida. É, quase sempre, algo de que gosto. Mas poderia não ser. Importa que, quando tenho fome, como. Parece evidente. Mas eu sei que não o é para uma grande parte do mundo. E, retirando o prazer (e a nutrição) essenciais dos alimentos, eu desejo. O mesmo desejo. E outro. Que toda a gente possa conhecer a plenitude de ter acesso a comida quando a fome adensa.

 

Falo com a minha família e os meus amigos. Nem sempre os mesmos. Sinto o carinho e a proximidade, mesmo quando a distância é muita e os desencontros se somam. Por vezes, apenas um emoji na caixa de entrada, que até fica por responder. Outras vezes, conversas longas em videochamada. Sinto-me parte de algo. E, quando essa emoção me preenche até os poros, eu agradeço a quem me faz feliz no contacto e desejo. Um desejo. Que também é o mesmo, mas é mais. Que toda a gente possa conhecer a plenitude desse aconchego de ter companhia no caminho.

 

Tomo banho. A água quente na pele desperta-me os sentidos. Lava-me o frio e a pele. Conforta-me e acalma-me. Prepara-me para que me vá deitar, tranquila e deixando o dia atrás de mim. Nesse aguaceiro de poliban, fecho os meus olhos. Desejo. Que toda a gente possa conhecer a plenitude do bem-estar e do prazer ao final do dia.

 

Não é sempre, entendam. Não sou perfeita. Mas, na maioria dos dias, tento beber do que aprendi, sentada de pernas “à chinês” no chão de um templo budista. Na maioria dos momentos, tento lembrar-me de que o Amor – esse capital e não o de uso corrente - não é um combustível fóssil, que se esgote. É energia branca. Limpa. Boa para a Natureza. Para a alma... Amar – disseram-me lá – é amar toda a gente. Amar – disseram-me lá – é amar sem exceções. Amar – disseram-me lá – só tem valor assim, quando o Amor é Universal.

 

Sempre tive amores universalmente grandes. E poucos. Esgotava a universalidade do Amor em poucas pessoas. Usualmente aquelas com quem partilhava os afetos. Aquelas com quem queria partilhar afetos. Mas, entendo agora, nunca poderia amá-las verdadeiramente se, nelas, depositasse o dever de me aceitar esse Amor de exceção.

 

Então, esta é a minha forma de amar. Amando as pessoas dos meus afetos. E aquelas que conheço, mas que não fazem parte da minha rotina de afeições. E aquelas que não conheço. E, imaginem, aquelas que me feriram e ferem e irão ferir. Esta é a minha forma de vos amar. Universal como o Amor é. Recusando-me a reduzi-lo aos lugares-comuns que nos ensinam a desaprender o Amor, dizendo que ele é só uma vez ou só para uma pessoa.

 

Amo assim.

 

E deito-me. Depressa fico entre corpo-de-gato e corpo-de-gente. Penso: que boa maneira de adormecer, que boa maneira de viver, que boa maneira de morrer um dia. Digo muitas palavras de Amor na minha cabeça. Não as digo porque – mulher de palavras – sei que elas cabem no silêncio dos gestos. Mas aproveito que elas me ocupem a mente. Desejo. Fechando os olhos para dormir. Desejo. Ser capaz de continuar amanhã. A amar. Esse Amor capital. Desejo-o porque sei que não é garantido. Não é sempre. Entendam. Eu amo. Muito. Mas não sou perfeita.

 

Desejar é – a cada dia - a minha forma de vos amar.

 

 Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Não faço ideia do real motivo entre os muitos possíveis, mas ler esse texto fez meus olhos marejarem e o coração pôr pra fora a camada de dureza que às vezes a vida impõe. Sua forma de ver o amor é tão única, sua consciência e cuidado social são tão fortes, creio que sabe, mas digo mais uma vez, te admiro demais.

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