Ontem foi Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho e dia de apagão. Hoje é Dia Mundial da Dança e de rescaldo nas redes sociais. Há dias para tudo!...
Mas hoje... hoje é um dia especial. E é um dia especial porque ontem foi um dia especialíssimo. Se a luz ao fundo do túnel já se tinha apagado (ou pelo menos esmorecido até ao ponto em que se torna impercetível a olho humano), a decisão súbita de toda a outra luz fazer o mesmo pareceu despertar algo há muito adormecido nas pessoas. Então, hoje é um dia especial. Hoje, nas redes sociais, é dia de rescaldo, de reflexão, de explorar o apogeu da auto-sabedoria. Dia de verbalizar literariamente o fruto da sua meditação. Dia de dizer, no fundo, qual a lição dada pela emergência mestre da véspera.
Quero fazer diferente e vou dizer o que não aprendi. Eu não aprendi que a luz é fundamental. Eu não aprendi que a água é fundamental (sim, também fiquei sem água!). Eu não aprendi que estar dependente de terceiros é limitador. Eu não aprendi que ter um fogão a gás é melhor do que ter uma placa elétrica. Eu não aprendi que faz falta podermos contactar quem amamos. Eu não aprendi nada disto ontem. Aprendi isto mais ou menos pela altura em que me levantava às sete da manhã porque queria ver os bonecos animados e em que a minha noção de sucesso para o futuro seria tornar-me a Power Ranger Amarela.
Ontem, quando muito, comprovei os limites da minha própria preguiça. Tinha garrafas de água para encher, que permaneciam vazias na bancada... porque tive preguiça de as encher quando havia água nos canos. Aproveitei que não havia eletricidade e descongelei o gelo para ter água... porque tive preguiça de ir comprá-la. Fiquei por casa porque, honestamente... é um oitavo andar e, como devem imaginar, o elevador não funciona durante um apagão.
Ontem, pensei nos hospitais, em pessoas que pudessem estar presas em elevadores ou no metro, nas atarefadas funcionárias que provavelmente fizeram o trabalho mensal de bíceps a passar aos vinte garrafões de 5L de água de cada vez, açambarcados por imbecis que não entendem que os recursos devem ser para todos e não para seu uso pessoal, único e exclusivo. Pensei na minha família e decidi – nada novo, também aqui... é uma decisão que já tomei noutras alturas, incluindo durante a pandemia – que se isto continuasse iria ter com eles, porque detesto não saber como estão. E pensei nos povos em guerra, nos sem abrigo, nas pessoas que vivem em condições deploráveis, em países de terceiro mundo, de segundo mundo, de falso primeiro mundo. Pensei como nos achariam ridículos por nos queixarmos tanto, por tão pouco.
Estou muito longe de ser o espelho da moralidade... e também não quero sê-lo. Honestamente, ontem estive entretida a trabalhar enquanto o computador teve bateria, continuei a ler O Adeus às Armas que estou quase a acabar, bebi vinho tinto numa caneca do Star Wars (porque, vocês sabem... há que poupar a água... o gelo não era muito...), fiquei a ver as luzes acender ao longe e as estrelas na minha marquise...
Depois a luz voltou também ao meu bairro. As pessoas celebraram na rua, com gritos, palmas e assobios, como se fosse um novo ano que começava. E, hoje, transportaram a emoção do momento para o registo do aprendizado numa longa e detalhada lista digital, que só puderam publicar porque há luz...
Eu sou a mesma pessoa que eu era há dois dias. Se calhar, durante um tempo, vou combater a preguiça e encher as garrafas com água. Se calhar, vou comprar uma lanterna. Mas fundamentalmente não mudei, não me tornei melhor, não descobri a importância de nada novo...
As pessoas querem sempre que tudo seja um momento de epifania. Bom para elas! Talvez sejam, na verdade, mais felizes que eu... melhores do que eu...
Mas fica a pergunta... foi a rede elétrica que caiu. Já alguém lhe perguntou se se magoou?
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