terça-feira, 22 de outubro de 2024

De compra em compra

 

Imagem gerada por I.A.

Nasci em Junho. Perdoem o narcisismo, mas começo o ano no mês do meu nascimento. O meu aniversário, esse não-feriado, foi, ao longo dos anos, mais um ponto-espelho de tudo o que vai indo de mal a pior com o mundo. Uma espécie de segundo Natal, que começam a celebrar ali à roda do dia da mãe e do 13 de maio... e que alguém acenda uma velinha, que de milagroso este texto nada terá... como bem sabem as entidades competentes, ou eu já teria sido vítima de um qualquer “acidente”...

 

Peço muitas vezes que não me deem presentes de aniversário pelo meu nascimento. Logo eu, que insisto em celebrar ao longo de 7 dias! Quero a pessoa presente e não o presente da pessoa. Quero como dádiva a partilha do momento e não o momento da partilha em dádiva. A pouco e pouco, desvalorizo tudo o que é físico. Sinto os objetos a comerem espaço nas divisões, como quem calcorreia o meu pensamento com uma catana.

 

Este é o dia em que presentes colocados nos meus dedos gratos entoam a sentença anual da nova corrida pelo gasto. Essa que me desgasta. Ainda mal passou o dia de abrir os olhos e já compram martelinhos e farturas de São João, compram as caríssimas férias no Algarve ou no estrangeiro, preparam tudo para garantir a melhor prenda do dia dos avós e gastam fortunas com o regresso às aulas. As lojas ajudam! Dizem que ajudam... Agências de viagens com promoções bombásticas. Entidades de crédito que dão todas as facilidades para qualquer eventualidade, incluindo a sua viagem de sonho. Lojas de roupa que garantem que nenhum jovem entre na escola usando – olhem que horror! – a roupa da coleção passada.

 

Começam as aulas e é hora de preparar o Halloween. Já há decorações e filmes novos no cinema. Já há fatos de fantasia. Já se vê nas ruas uma ocasional saia com morceguinhos, um chapéu de bruxa, dentes de vampiro, sem abrigo (ups, desculpem, texto errado...). E é importante que se comece a preparar o Dia das Bruxas ainda em setembro, sem esquecer as flores e velas para os cemitérios no Dia de Todos os Santos, porque em outubro as lojas têm de se organizar para o Natal. A época mais bonita do ano, onde tudo tem brilho e cor... principalmente as grandes corporações que guardam as moedas e notas verdinhas dos contribuintes: esses alienados que não sabem bem como pagar a renda e os impostos, mas investem fortemente nas decorações mais festivas e nas prendas mais dispendiosas. Folhetos e catálogos dão-nos promoções e sugestões e preços imbatíveis... a superficialidade está cara, mas os cupões ajudam! E, para os mais arrojados, aproveitar os preços de Natal para programar o Ano Novo também não está mal pensado, que é um gasto a mais para se ter um gasto a menos!

 

Vira o ano. 3, 2, 1!!! Feliz ano novo! O ano é novo, mas o hábito é velho... não se perca tempo, que é preciso fazer a reserva ideal para o dia dos namorados, não vão os restaurantes esgotar as suas mesas e levar ao término do amor puro e eterno de dois entes, que morrerão se não fizerem uma refeição inflacionada e mal servida.

 

Mas não! Não nos demoremos a pensar no amor, que amor é por quem nos deu a vida e é preciso comprar a prenda do dia do pai! E pensar que abril também está à porta e que é preciso compensar os nossos afilhados e explorar os nossos padrinhos, comprando ovinhos e amêndoas e coelhinhos, e consolas e smartphones novos. Os mais interventivos podem até aproveitar o embalo para comprar já os cravos plásticos para o 25 de abril que - sabe-se lá como! - conseguiu também tornar-se um feriado comercial. A ironia de se pagar a liberdade com liberdade... ficando sem ela.

 

A roda do ano anda bem oleada e vamos seguindo de compra em compra. Um crédito. Um crédito para pagar o crédito. Um crédito consolidado para ajudar com os vários créditos. Ginástica financeira impossível. E impostos que são sempre aliviados para o 1% que poderia pagá-los... e intensificados para quem se mata para os pagar. Contas vazias. Ilusão de conquista, prenda a prenda. E uma realidade que nos prende. À roda. A mesma. Aquela que interessa só aos que têm Natal todos os dias e a quem nunca falta nada!

 

Começamos a comprar o nosso funeral no dia do nosso nascimento e, mesmo assim, como salienta Fisher citando Fredric Jameson e Slavoj Žižek, "é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo". Olho o ano... poderíamos montar tenda nos centros comerciais, para ao menos poupar em combustível (já que voltou a subir!). É que até Cristo – dizem – morreu e ressuscitou passado três dias... só o filho da puta do capitalismo é que parece ser imortal.

Marina Ferraz




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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Universidade pública

 

Imagem gerada por I.A.

Lisboa, Setembro de 2030

 

A Faculdade Pública de Comunicação, única em funcionamento no país desde a privatização das demais instituições de ensino superior, vem por este meio dar conhecimento da abertura de 200 vagas para a Licenciatura em Jornalismo Manso. As candidaturas deverão ser enviadas apenas por alunos de sobrenome Carneiro, que residam na cidade ou que provenham de outras regiões do país, contando que tenham capacidade financeira para suportar a renda de mil euros por quarto, sendo que esta é a avença mais reduzida que atualmente vigora na capital. Alunos cujo IRS familiar não comprove a sua capacidade financeira para suportar a sua estadia não serão considerados para as vagas.

 

O programa deste curso tem uma componente teórica e uma componente prática, com o objetivo de promover a higienização mental e fornecer capacidades efetivas, em campo, sem recurso a instrumentos de apoio nocivos, como auriculares. Lecionadas por comandantes das mui nobres forças armadas portuguesas e fundamentais figuras do clérigo, as aulas iniciar-se-ão com um momento de oração, no qual se promoverá o conceito de família tradicional, garantindo que os alunos não estão sujeitos à pressão para enviesar a sua moral para atividades divergentes e moralmente incorretas.

 

Além das aulas de frequência obrigatória como “A História do Jornalismo Manso”, “Fontes Oficiais e Pesquisa Breve” ou “Media ao Serviço da Economia Política”, que visam a manutenção do status quo e da ordem natural da vida nacional na construção de textos e criação de conteúdos audiovisuais, haverá também uma seleção de unidades curriculares opcionais, de entre as quais o estudante deverá escolher 2, e que são: “Escrita para Imprensa Mansa”, “Técnicas Passivas de Jornalismo”, “Psicologia da Apatia Social Induzida”, “Comunicação de Ciência Irrefutável”, “Técnicas para Silenciar Debates” e “Media e Serviço ao Governo”.

 

Ao longo do ano serão ainda promovidos vários workshops, lecionados por figuras incontornáveis do Estado, que darão a conhecer as principais razões pelas quais um jornalismo pacato e baseado apenas nas fontes oficiais de informação é importante, destacando ainda a importância de não buscar o contraditório para qualquer notícia relacionada com a ação governamental.

 

É objetivo que, através de um regime de Bolonha, agora atualizado para apenas 2 anos de estudos, os alunos consigam atingir um nível de excelência no jornalismo manso, que permita aos mui nobres regentes desta nação democrática atuar de forma a potenciar a eficiência administrativa do Estado, para benefício das camadas sociais com maior poder aquisitivo.

 

Para os alunos que cumpram os requisitos, haverá a possibilidade de estágio numa das cadeias de televisão e rádio privadas, com as quais o Estado mantém estreita parceria.

 

P.S: Devem ser pagas à cabeça 3 mensalidades de propina e duas de caução, apresentando ainda um fiador no momento da inscrição.

 

Enviem as vossas candidaturas para: nãoserevoltemnão@depoisqueixem-se.pt


Marina Ferraz




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terça-feira, 8 de outubro de 2024

A mistura

 

Imagem gerada por I.A.

Quando eu era pequena, a minha mãe preparava-me uma taça de Cerelac ou Nestum de Chocolate para o pequeno-almoço. (Não, este texto não é patrocinado pela Nestlé.) Havia semanas que recebia um, semanas em que recebia outro... e dias raros nos quais tinha, de presente, esperando por mim na cozinha, uma taça de mistura. Nesses dias, a taça tinha um aspeto de Stracciatella e, para melhorar a sensação que me trazia, o Cerelac formava ainda, como acontecia nos dias em que vinha a solo, pequenos grumos deliciosos por entre a cremosidade do resto da mistura.

 

Isto fazia-me feliz. Os grumos eram a parte do Cerelac que deixava para o fim, deliciando-me com a textura e o sabor dos novelinhos granulados. O dia da mistura era diferente e especial.

 

Nos meus olhos de criança, a minha mãe tinha o cuidado de preparar a papa como eu gostava e a atenção de me premiar, de tempos a tempos, com uma delícia nova, de sabor lácteo ponteado a chocolate. E eu, que a amava por mil outras razões, amava-a também por isso. Porque era a cuidadora carinhosa que me deixava, a cada manhã, aquele presente sobre a mesa, para que eu começasse o dia a sorrir.

 

Demorei muito tempo a saber que a mistura era o aproveitamento do resto do pacote, que não chegava para uma refeição, com o novo, para que se poupasse. Demorei muito a saber que os grumos eram a corrida sem tempo de uma mulher que tinha mais dois filhos para cuidar e que tinha de deixar todos na escola e cuidar das tarefas.

 

Hoje, o meu pequeno-almoço é um café afogado em (demasiado) açúcar com canela em pó. Mas ainda faço as papas às vezes, para o lanche ou um almoço ocasional. Como o meu Cerelac com grumos e gosto particularmente quando tenho um pacote no fim e outro a começar, para fazer a mistura. Estranho, ainda assim, que não tenham o mesmo sabor de que me recordo nas manhãs da infância. E, de todas as vezes, percebo que a memória doce não é a do pequeno-almoço, mas a da minha mãe, que mo servia, fazendo-me acreditar, sem dizer nada, que tudo aquilo era por e para mim.

 

A minha mãe nunca me disse que deixava os grumos por minha causa. Também nunca me disse que fazia a mistura porque eu gostava. Eu assumi isso. Porque tudo o que ela fazia era por mim, e eu não achei que as caraterísticas do meu pequeno-almoço tivessem qualquer diferença. Espantei-me, por isso, quando ela me disse que só fazia a mistura para aproveitar e que deixava os grumos porque não tinha tempo.

 

É uma coisa engraçada. Eu não me lembro de ela não ter tempo. Eu não me lembro de ela cortar em algo para poupar. O que eu me lembro é que ela me fazia o pequeno-almoço. E no simples gesto de o fazer, me fazia sentir a menina mais especial do mundo.

 

Quando me deixava na escola, dizendo adeus através do vidro do carro, eu queria a hora em que me viesse buscar... e às vezes, porque ela estava cansada, jantávamos piza. E sim... eu também achava que era só por eu gostar e não porque o dia a desgastara até ao limite!

 

O mundo cabia no amor. E nem que o mundo real estivesse todo a explodir lá fora, ela transformava essa realidade para criar uma bolha só nossa, protegendo a minha inocência a todo o custo.

 

Tudo isto para dizer o seguinte... Atrás dos gestos de amor, houve empenho e esforço, corrida e cansaço. Houve o mundo a desabar. Houve desespero e descontentamento e dificuldade. Tentarei não me esquecer disto. Mesmo hoje, quando o mundo real está todo a explodir e eu estou cansada. Porque é exatamente assim que quero dar-me aos outros. Porque é exatamente assim que quero viver a vida. Com um pouco de amor em cada gesto, como se os gestos fossem perfeitos... e não se fizessem acompanhar de tudo o que vai menos bem em mim...

 

Possa esta bolha servir para proteger a inocência das crianças.

 

Possa este texto abrir os olhos dos adultos.

 

Possa o futuro ser como o dia da mistura. Feliz-feliz.


Marina Ferraz




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terça-feira, 1 de outubro de 2024

Português suave

 


O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Normalmente tinha a navalha no bolso, o sorriso no rosto e um cigarro na mão, quer o fumasse ou o usasse para ver o mundo através do fumo, senhor desse ponteiro aceso. Era um português suave a fumar Português Suave.

 

O cigarro do meu avô não era só um vício de nicotina. Era um gesto vicioso mais amplo. Uma rotina alicerçada no prazer. Um espaço de partilha. Fazia-se acompanhar da frase, que repetia à minha mãe, feito bênção, quando ela começava a levantar a mesa do almoço. Deixa lá isso e senta-te aí, fuma comigo.

 

Ela sentava-se e fumava com ele. Nessas alturas, ao lado do cinzeiro, o líquido âmbar, sorvido de forma lenta e eficaz, fazia do copo largo o amante improvável das beatas. E eu brincava. E eu corria. E eu olhava, imitando os gestos com os meus cigarros de chocolate, que na altura não eram proibidos nem anti didáticos, e que acabaram por nem me transformar numa fumadora real, nem me trazer diabetes...

 

O meu avô tinha o sorriso doce. Ia dormir a sesta. Acordava com energia suficiente para que víssemos filmes de domingo à tarde e jogássemos dominó... tudo ao mesmo tempo. Tinha livros policiais sempre pousados na mesa. E também esses livros eram amantes inveterados do cinzeiro, onde ia apagando sucessivos cigarros, que sorvia com paixão, com a trama na mente.

 

Era um homem do campo, com a quarta classe. Um homem que trazia os traços boémios da juventude, vincados em cada ruga de expressão. A Liberdade, da qual talvez desdenhasse um pouco, era a mesma evocava em gestos. Nunca se negou nada. Fumou cada cigarro com ânsia e sorveu com igual paixão alimentos, bebidas, amores e desejos.

 

O meu avô foi imortal até tocar o telefone. Mas uma noite, o telefone tocou. O toque do telefone é horrível. Feio. Ecoa pela noite como uma promessa estridente de silêncio.

 

Hoje, a minha mãe não fuma e ninguém a impede de arrumar a mesa depois do almoço.

 

O quiosque onde o meu avô ia fechou algum tempo depois de ele morrer... e eu acho que foi por isso. Que o negócio do tabaco só sobrevive quando se fuma. Vive da morte dos outros, mas só até os matar.

 

Já não se vendem cigarros de chocolate. E eu já não sei se consigo jogar dominó e ver televisão ao mesmo tempo... porque raramente jogo dominó e não tenho televisão.

 

Sei que inalei muito fumo e muito amor junto desse português suave, que não era tabaco, mas gente...

 

E, porque não quero que o toque do telefone tenha sido o carrasco da imortalidade do meu avô, aqui estou. A falar sobre ele, outra vez, na data da sua morte. Para que a memória não seja como aquelas beatas no cigarro, que o copo de whiskey e os romances da Agatha Christie namoravam.

 

 

O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Eu carrego sempre comigo a memória suave, num maço de histórias para contar. E um pouco do mau feitio. E um sorriso doce, às vezes. Não há herança mais bonita.

Marina Ferraz




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quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Informação

 

Imagem retirada da web | Pixabay

Informamos os nossos clientes e amigos de que os textos fáceis estão esgotados e que na prateleira da paciência sobram apenas uma ou duas palavras amenas a granel. Para artigos alegres e jubilosos, recomendamos que procurem junto dos nossos concorrentes ou que voltem depois do transplante de personalidade.

Cordialmente,

A Gerência.

 

É! Talvez desconfiassem. Mas eu falo de mim na terceira pessoa do plural. Eu sou eu e todos os eus que me povoam. Incluindo aquele incómodo desconforto que se alojou no quinto andar do meu interior, mesmo na linha da olheira, e que não para de enviar cartas formais a queixar-se das infiltrações e do cansaço. Já o levei ao psicólogo. Psicólogos. Unanimemente disseram-me que tirasse férias, porque não entendem que não é o trabalho que me cansa... mas a vida.

 

É um lidar com contas que acumulam, um pagar de impostos injustos, que só servem os interesses de quem já tem tudo e quer mais, uma insegurança de tempo inteiro que permeia os textos que escrevo para os clientes... medo nas entrelinhas de cada um deles... É um lidar com pessoas que querem de mim o que não tenho para dar. Um lidar com gente que dá mais do que eu posso aceitar. E um ir... frequentemente vendo as nuances da morte nas histórias dos planos que fiz, como se eles não fossem mais do que uma ilusão.

 

Olho para as paredes da casa. Chegou o outono. As folhas lá fora mudam de tonalidade e as paredes também. Com a chuva. Não é só o inquilino da minha linha das olheiras que tem problemas com a humidade...

 

Saio para pedir um pouco de amor e recebo dúvida. Dou por mim a não sentir muita vontade de escrever. E alguém me pede um texto leve e feliz. Tento ir ali ao lado livrar-me da tonelada e meia que trago em cima dos ombros, para as mãos serem leves. Mas desisto! Ali ao lado há gente que não tem humidade em casa, porque não tem casa. Chegou o outono e as pessoas caem como as folhas. Dói.

 

As notícias são da guerra, da fome, do sofrimento. A televisão é a Caixa de Pandora que todos abrimos. E, nas escolas, tentam ensinar às crianças as orações. Subordinadas e coordenadas com todos os interesses políticos e económicos do dia. Santa Economia, Mãe das Decisões Políticas, ajuda-me nesta hora, para que consiga trabalhar de sol a sol na tua guarida, para pagar as tuas exigências e morrer sem dívidas. Amén. As crianças trilham o caminho das pedras para um futuro sem futuro. Aprendendo obras fundamentais cujos resumos decoram e as mensagens descuram... como é desejável que se faça, que as interpretações são frequentemente inimigas do status quo.

 

Atraso a publicação deste texto porque o inquilino do terceiro andar vive a queixar-se de dor, entre sístole e diástole. Os médicos dizem que é crónico. Ou diriam se o SNS ainda existisse de facto. Como não existe, supõe-se que o dissessem... num mundo onde os nossos impostos servissem efetivamente para alguma coisa socialmente proveitosa. Acalmo-o com um poema ou dois, daqueles que vêm de brinde com os bollycaos. Mas, no fim, ele deixa o bolo e come só o caos... e a dor permanece.

 

Todos nós. Eu e estes inquilinos de mim. Todos estamos a fazer liquidação total da secção das superficialidades. Foi assim que os textos fáceis esgotaram e que esgotarão também as palavras amenas. Estamos a pensar abrir um negócio mais adequado aos tempos. Mais adequado ao amargo do caos que comemos e do mundo que nos abriga, por agora numa casa com humidade... mas numa casa... esse privilégio dado a cada vez menos pessoas.

 

Então, este é o meu pedido e recomendação, principalmente para quem me diz que devia escrever coisas mais otimistas, mas também para todos os que o pensam e não o dizem: Para artigos alegres e jubilosos, procurem junto dos nossos concorrentes ou voltem depois do transplante de personalidade.

 

Desde já agradeço a compreensão, embora ela também esteja em falta nas prateleiras do mundo de hoje.


Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de setembro de 2024

Incêndio

 

Imagem gerada por I.A.

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Porque escrevo. Porque me habituei à rotina de ter textos à terça-feira. Planeava publicá-lo às sete. Então escrevi-o na mente, aguardando a hora de me render às teclas do computador, para o debitar, libertando-o das amarras do pensamento e desfiando as ideias pelas linhas direitinhas do editor de texto, em Times New Roman, 11.

 

Sim. O meu texto estava escrito na minha mente. Mas tinha-o pousado sobre as ervas frescas da esperança, verdes. E as ervas verdes ficavam sobre solo rico de minério.

 

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Mas o meu texto não interessa a quem quer escavar o solo para colher opulência e abrir campas.

 

Hoje não tenho texto. Atearam o fogo. Ardeu.

 

Sobrou o fumo. A cinza. O cheiro nauseabundo da morte. Um pensamento disperso. Um cansaço imenso. Olhos alagados. E um pouco de raiva quente. Para um próximo texto.


Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de setembro de 2024

Conjuntura planetária

 

Fotografia de pt_astrophoto


Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados!

  

Não percebo muito de astrologia. Mas isto eu sei! Na astrologia existe um fenómeno. Planetas retrógrados. Fala-se deles quando, olhando o céu, observamos que esses planetas fazem um movimento contrário ao expectável, andando para trás. Calma! Eles não andam para trás. Mas a Terra move-se e faz com que pareça assim. E, de repente, a conjuntura mais propícia à Lei de Murphy parece abater-se sobre os humanos. Apesar de o planeta mais próximo estar a cerca de 40 milhões de quilómetros de distância.

 

Bem mais perto, andar para trás não é ilusão de ótica, mas ciclo. Caixinhas e caixinhas e mais caixinhas, onde se enfiam seres humanos com base no género, na sexualidade, na cor da pele e na conta bancária. Divisões que separam norte e sul. Que decidem quem vive ou morre. Que colocam a barra do sofrimento em patamares incomparáveis, enquanto as florestas são regadas com água do mar e chuva ácida. Para que um dia o ar escasseie e sobreviva só quem o engarrafou... Tento explicar que o que me importa são as pessoas. O resto são saliências, orifícios, melanina e casualidade.

 

Querem saber em que caixa estou. E eu quero estar fora da caixa. Sem saberem que uniforme devem vestir-me, dão-me uma t-shirt larga com um alvo no bolso frontal, do lado esquerdo. E mandam que volte mais tarde ao guichê, na esperança de que alguém acerte na mouche, e eu não volte.

 

Vou andando. Guerra aqui e ali. Violência ali e aqui. Dor a crescer a céu aberto e esperança a mirrar nas estufas que ninguém rega. Gente de t-shirt vermelha, com uma pequena cratera no bolso. Furo de bala. De bazuca. De tecnologia triste e podre. Lançada por um drone. Escavada por uma draga que sugou até a vida da própria luz que criou a vida, quando os Deuses não tinham sido inventados.

 

Atiro uma bala ao charco. O metal afunda. E eu afundo a cabeça nos joelhos. Espero o meu tempo. Regresso. Ainda não pertenço a nenhuma das caixas. Perguntam o que sou e sou só pessoa. Não têm esse espaço entre os espaços destacados. Querem saber género, sexualidade, cor da pele, estrato social. Saliências, orifícios, melanina e casualidade. Mas eu não me interesso por isso. Não penso nisso. Ignoro-os. É difícil ouvi-los e aos seus pedidos por entre os gritos da tirania, da guerra, da vida no segundo antes de ser morte, quando vai de ruído escabroso a silêncio áspero.

 

Dizem-me que devo estar sob a influência de algum planeta retrógrado. Sinto-me miserável! Malditos planetas retrógrados! E perguntam-me se sei qual é... Não percebo muito de astrologia. Mas se um planeta está a fazer-me isto, tenho quase a certeza que é a Terra.


Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de setembro de 2024

A criança torturada

 

Imagem retirada da web | Pixabay

O homem agarrou a criança. O homem obrigou-a a assistir à morte da mãe e do pai, numa tortura muito lenta, que os fez arrancar os olhos e caminhar cegos até ao abismo. O homem disse à criança que precisava de aprender todas as razões pelas quais ele era o herói, o mestre, o único salvador na pátria. O homem determinou que a criança teria de respirar fumo de escape, de segunda a sexta. Obrigou a criança a trabalhar em salas húmidas, com iluminação imprópria e aguentando o calor insuportável dos dias quentes e o frio enregelante dos dias gelados. Castigou a criança. Bateu à criança. Obrigou-a a pagar pelas distrações até que não sobrasse moeda para o lanche. Obrigou-a a deixar de ser criança. Fechou-a na jaula das obrigações com outras crianças iguais a ela: que já não o eram! Mandou que procriassem de noite e se fizessem úteis durante o dia. Deixou que se vissem os ossos miúdos por debaixo da pele, fruto de fome, fadiga e desespero. Transformou as crianças em pais. Torturados lentamente. Até arrancarem os olhos e caminharem cegos para o abismo. Frente às crianças que assistiam, obrigadas...

 

Só que o homem era o Estado.

 

E a criança éramos nós.

 

Talvez com os olhos nas mãos, a caminhar para o abismo seja tarde.

 

Talvez fosse diferente se, enquanto estão no rosto, os mantivéssemos abertos.


Marina Ferraz




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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sismo

 

Fotografia: João Almeida Firmo

Provavelmente fui eu. Perdoem. Ando a cismar no que não devo. Porque quando eu cismo, cismo... Vou dizendo a mim mesma que não quero mudar ninguém. Repito para dentro o mesmo mote que me move a vida. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Mas cismo. E dá vontade de dar uns abanões por aí. Abanar o chão. Abanar as pessoas. Fazer com que entendam que não é sobreviver. Mas sobre viver.

 

 

A terra tremeu. Eu não dei por que ela tremesse. Mas tremeu. Não dei por isso, provavelmente, porque tenho precisado de dias de 48 horas para acabar o trabalho. Porque tenho contas para pagar e o que sobra depois de pagos os impostos nem sempre chega para o resto. Porque quando me deito, em vez de dormir, como toda a gente, durmo com a conta das próximas 48 de que preciso para continuar a fazer o mesmo, e já a arrepender-me do prejuízo que será fechar os olhos por três, quatro, cinco horas... só para não fritar mais o único neurónio que ainda se arrasta para a função, marcando ponto com os filamentos trémulos e já a emborcar um café triplo.

 

Estava ocupada a fazer o que ninguém faz por mim. Descansar. Para depois me ocupar de fazer o que ninguém faz por mim. Trabalhar. A pensar na possibilidade de fazer o que ninguém faz por mim. Viver. E a lembrar-me de que, provavelmente, também não estou a fazer isso por mim. Porque tenho contas para pagar. E o que sobra depois de pagar os impostos nem sempre chega.

 

Segui pelo meu dia como sigo pelos dias. Sem querer saber de que a terra tivesse tremido. Lendo, aqui e ali, sobre isso. Desconhecendo ainda o impacto que um sismo pode ter nas pessoas. Mas tem. Tanta gente me perguntou se o tinha sentido, que dei por mim a repetir para dentro. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Até à exaustão. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Porque o monstro dentro de mim queria soltar-se da boca. Porque o monstro dentro de mim queria abanar as pessoas. A terra. O planeta inteiro. E perguntar: sentiste quando te roubaram a possibilidade de viver a vida que querias? Sentiste quando te mataram a esperança? Sentiste quando te obrigaram a ser escravo do teu país? Sentiste quando definhou a tua luz, porque eles a apagaram num sopro, como quem celebra o aniversário? Não perguntei isto a ninguém! Ser e deixar ser. Ser e deixar ser. Ser e deixar ser.

 

Estou a tremer. O chão parece-me estático. As pessoas também. E estou a tremer. Um pouco de raiva. Um pouco de dor. Um pouco porque o cansaço faz com que se sinta frio, mesmo que estejam dias quentes lá fora. Não sei se estão. A minha casa é fria porque mal apanha sol... e eu tenho de trabalhar as ditas 48 horas dos dias estendidos, porque o meu país me impede de existir condignamente a menos que o faça.

 

As pessoas, meio assustadas, reúnem agora um conjunto de estratégias de sobrevivência... e perguntam, baixinho, como se não quisessem assustar as placas tectónicas: Porque é que isto aconteceu? É que foi um sismo com uma magnitude de 5,3 na escala de Richter... Porque é que isto aconteceu?...

 

Provavelmente fui eu. Perdoem. Ando a cismar no que não devo. Porque quando eu cismo, cismo... Provavelmente fui eu. Apetece-me abanar qualquer coisa. Alguém. Mas quem sou eu? Fico por aqui. A cismar. A tremer. A pensar. Talvez se a tirania se medisse na escala de Richter, pudéssemos ser nós o terramoto.

 

Não para tentar sobreviver. Para tentar viver.

 

A sobreviver estamos nós... e para quê?

Marina Ferraz




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terça-feira, 20 de agosto de 2024

Verão

 

Nasci no Verão. Sempre me liguei mais ao Outono. Talvez porque, se a matemática não me falha, fui gerada nessa estação, com a queda das folhas. Disseram-me muitas vezes que, como elas, a minha vida seria em queda. Como se eu fosse a folha frágil que tomba, sem capacidade para se agarrar aos ramos e sobreviver. Não é que eu faça muita questão de sobreviver. Mas ainda aqui estou. Tomando as tonalidades quentes do mundo, perseverando e seguindo para o Inverno com a seiva muito viva em mim.

 

Todos os anos, atravesso o Inverno e a Primavera para chegar ao Verão. Chego caótica. Com sardas no rosto, fazendo reticências na pele branca que escondo do sol sempre que possível. Cansada de esticar o cabelo, até porque o treino de braços do ginásio me chega, desisto mais vezes de sequer me pentear. As ondas e cachos bravios fazem um retorno, dando razão às placas dos cafés onde se lê “há caracóis”. E eu transformo-me, assim, num misto entre um dálmata e um poodle, caminhando nas mesmas ruas e escondendo-me no mesmo covil.

 

Olho para mim e sei que é Verão. Mas, quando abro as páginas das redes sociais, descubro que as duas estações do momento são o Inverno e o Inferno. Há um frio nas pessoas de enregelar a alma, e o mundo vai ardendo com temperaturas que negam quem nega as alterações climáticas e um ambiente de guerra e medo, um pouco por todo o lado.

 

As estações estão todas trocadas. Mesmo que as sazonais fotografias de pernoca ao léu ainda compitam com os anúncios dos ginásios para quem é crente no milagre do Espírito Santo... As estações estão todas trocadas. O mundo arde. Ora bomba. Ora incêndio. Fogos postos por homens que não merecem esse nome, pois não respeitam homens, mulheres, crianças, árvores, animais, nem coisa nenhuma...

 

Fico feliz por não acreditar num deus único, nem que ele criou o mundo, porque me incomodaria ter pena de deus. Mas num concílio de todos os deuses, de todas as fés, imagino que há um desespero agarrado à desistência, vertendo copos de gin tónico... porque é amargo como a visão terrena e embriaga os sentidos.

 

Vivaldi tocaria agora de forma muito diferente as suas Quatro Estações. Talvez fossem duas estações, mais desafinadas e grotescas. Uma peça que os pianistas só pudessem tocar em pianos partidos, aos quais já faltassem teclas.

 

Olho para mim e sei que é Verão. Há qualquer coisa em cima das minhas sardas. É realmente Verão. Tenho mar a fugir dos olhos. 


Marina Ferraz




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