terça-feira, 19 de novembro de 2024

O nome esquecido

 

Imagem gerada por I.A.

Tenho pena de deus. Esse que alguns escrevem com maiúscula. Usaria maiúscula se soubesse o seu nome. Mas conheço-lhe apenas o cargo. Acredito que seja um workaholic mais velho do que o tempo, tão focado no cargo de poder que já não se lembre bem de que nome tem ou como chegou a tão alto patamar, ou quando foi a última vez que descansou.

 

O deus do qual tenho pena é um deus único, amado e odiado, que de tão omnipresente não está de facto em lugar nenhum. Cresci a ouvir falar dele e nunca constou que tivesse mãe. Nunca me disseram que tivesse pai. Irmão. Irmã. Tios. Primos... Alguns disseram-me que ele era pai e mãe. Alguns disseram-me que ele tinha tido um filho, mas que esse filho era também filho de uma pomba, de um carpinteiro e de uma virgem. Alguns disseram-me que ele era todo-poderoso. Nunca ninguém me disse se ele era feliz. Ou se estava bem. Quando foi a última vez que comeu. Quando foi a última vez que passeou pela Natureza que ele mesmo criou. Quando foi que adormeceu com luz estrelas a bater no rosto ou o beijo de qualquer uma das múltiplas luas do universo.

 

Tenho pena dele, embora não saiba a resposta a nenhuma destas perguntas. Porque se os homens e mulheres não as fizeram antes de mim, é talvez porque ninguém queira realmente saber de deus. Ou pior, talvez porque só queiram que ele queira saber deles, e só se lembrem dele quando precisam de alguma coisa.

 

Se deus tivesse pai e mãe, talvez lhe dissessem que, na Terra, a retórica política usa a religião como motor de legitimação da autocracia. Que pessoas como Ventura, Bolsonaro, Trump ou Putin, entre muitos outros na História, já disseram, de forma direta ou indireta, que foram enviados por ele, para cumprir um qualquer papel messiânico na salvação de países ou do mundo. Que um suposto “povo eleito” é culpado de genocídio. Se deus tivesse pai e mãe, eles diriam, caso isto seja verdade, que talvez seja hora de repensar as escolhas. Talvez lhe dissessem: “filho, todas as tuas decisões têm consequências”. E talvez ele ouvisse, como alguns adolescentes ouvem, entre revirares de olhos, adequando a ação para criar o mundo de paz e amor .

 

Assinam-se documentos que permitem o uso de armas nucleares, montam-se tendas e camas de cartão nas ruas da cidade, destroem-se outras tendas em campos de refugiados, e onde dormiam mulheres, crianças, bebés, gente, é deixado apenas o grito da morte e destroços.

 

De deus, sabemos só o que nos dizem. E a fé mais bonita dos homens permanece, em orações que valem ouro, porque estão cheias de benquerença e compaixão. Tenho fé em algumas pessoas que rezam e defenderei o direito de qualquer pessoa ter a fé que tem, mesmo que eu não a tenha. E viverei desejando que essa fé seja um motor bonito para uma vida melhor e uma maior empatia e um amanhã que mereça ser vivido. Mas de deus eu conheci uma história triste. Aquela que me contaram, sempre na perspetiva dos homens. Disseram-me que deus salvaria o mundo. Nunca que o mundo salvaria deus. O mundo não o salva. O mundo está a matá-lo, se é que existe, usando-lhe o formal nome em nome de coisa nenhuma. E eu tenho pena de deus, porque o imagino velho e meio senil, sabendo que é deus porque tem o cargo mais complexo de todos e lho lembram diariamente, mas já sem lembrar que nome tem... ou se alguma vez o teve... ou para que o teria, se o soubesse, já que ninguém lhe pergunta como se chama.

 

Sussurro às estrelas. Se estás aí e existes, diz-me como te chamas. Quero saber se és feliz. Quero saber se estás bem. Quero dizer-te que tens de repensar as tuas escolhas. O silêncio abraça-me. O smog da cidade cobre o céu. Por entre a poluição, se há resposta, eu não a ouço.


Marina Ferraz




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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O maior elogio

 

Imagem gerada por I.A.

Disseram-me: só conheci uma pessoa verdadeiramente livre. Estavam a falar comigo. Estavam a falar de mim. E este foi o maior elogio que alguma vez recebi. Em 35 anos de vida, este foi o elogio mais bonito que ouvi uma pessoa dar a outra. E só fica, dentro de mim, a embater contra carne e ossos, a certeza de que não o sou. Verdadeiramente livre.

 

 

Todos os dias nos levantamos para os inevitáveis e as regras mundanas. Assumindo os acontecimentos com fatalismo. Aceitando-os e naturalizando-os, como se a norma social não fosse artificialmente construída. Rezamos ao Deus dos nossos pais e avós, evitamos impropérios, estabelecemos relações monogâmicas, seguimos uma linha “coerente” de vida, seguindo do liceu para a faculdade, da faculdade para o trabalho, do trabalho para a reforma; do namoro para o casamento, do casamento para os filhos, dos filhos para o divórcio. Subjugamo-nos ao ser bom aluno, ser bom marido ou esposa, ser bom pai ou mãe, ser bom profissional, ser cumpridor das normas, ser o que nos disseram para sermos... e sim, este uso da primeira pessoa do plural é em si uma convenção ancorada no politicamente correto. Porque eu não o faço, não quero fazê-lo e só não digo que detesto quem o faz porque não posso detestar o mundo quase todo e viver uma vida plena e feliz... mas detesto, isso sim, saber que as pessoas fazem isso a si mesmas.

 

Dizem-nos, falando da norma: vai por aqui, que é o caminho da felicidade. Mas quase ninguém é feliz na norma. Então, convenciona-se que é normal não estar feliz. Ter de lutar pela felicidade. Pelo sonho. Plantar hoje para colher amanhã. E plantamos, plantamos, plantamos... sementes e sementes e sementinhas do que não vamos colher, alimentando as mesmas galinhas gordas que entenderam tudo e riem, dos seus palanques, atirando ovos dourados - esmola ocasional para criar a ilusão de retribuição.

 

Olho para a norma e não encontro, de raiz, nada de errado nela. Porque é sempre essa a defesa dos que se ofendem com a Liberdade. Mas eu sou mesmo católico. Mas eu quero casar. Mas eu quero cumprir o meu papel de esposa. Mas eu quero ser um bom empregado. Mas eu quero... Fantástico! Está tudo certo. Podemos querer ser o que nos dizem para sermos, desde que saibamos que não estamos a sê-lo apenas por isso. Ser porque os outros são. Ser porque os outros dizem. Ser porque aprendemos o A-B-C do status quo e acreditamos que é a única forma... isso é o que o me incomoda. E incomoda-me porque, quando assim é, nem as pessoas são livres, nem deixam que os outros o sejam. A prova disso é que vivemos num tempo estranho onde a modernidade se mescla com o conservadorismo e passa a integrar princípios arcaicos de apatetado moralismo e puritanismo. Um tempo no qual a censura é desvelada, acontecendo diariamente, mesmo em frente dos olhos complacentes de meio mundo.

 

Acredito na Liberdade. Acredito nela de uma forma tão plena que acho que toda a gente deveria libertar-se das amarras constrangedoras do politicamente correto e socialmente aceitável para ser o que quiser, mesmo que isso seja divergente da artificial norma. E, ao fazê-lo, deveria dar espaço para que o outro possa fazer o mesmo, ainda que o faça de uma forma diferente. Ser e deixar ser. Mas ser, realmente. E deixar realmente que o outro seja. Sem invasões de espaço, sem imposição de limites, sem constrangimentos e preconceitos, sem julgamento, sem cobrança.

 

Para nos limitar, já temos a lei. Não precisamos uns dos outros.

  

Por isso, quando me disseram, lágrimas nos olhos - só conheci uma pessoa verdadeiramente livre – e estavam a falar de mim, eu sorri. Eu não sou verdadeiramente livre. Mas gosto de o ser nos olhos de alguém... porque só eu (e os meus idos) sabemos como estou a tentar. A Liberdade é uma semente que plantei no solo da minha vida e que rego regularmente. E, sim, monto-lhe guarda cerrada!... Porque há sempre uma galinha gorda por perto, a querer comer a semente a troco de um ovo de falso ouro. E eu tenho uma ideia do buraquinho em que, com os impropérios aplicáveis, devo mandá-la enfiá-lo...


Marina Ferraz




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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Oferta de emprego

 

Imagem gerada por I.A.


Exmos Srs.,

 

Venho por este meio responder ao vosso anúncio de emprego, que passo a citar:

 

“Sempre quiseste fazer parte de um espetáculo? 

Procuramos cantores, atores, bailarinos... artistas! 

Projeto não remunerado, a decorrer em 2025.

Envia a tua candidatura para o nosso email.”

 

Sim! Eu sempre quis fazer parte de um espetáculo. Mesmo sabendo que o meu país não apoia as artes. Que o ensino para a cultura é insuficiente. Que, a pouco e pouco, os palcos e os bancos e os camarotes acumulam pó e memórias do que foi a glória antiga. Mas eu quis fazer parte de um espetáculo, mesmo assim. Sonhei muitíssimo com o evento no qual os produtores soubessem o valor da arte. No qual os meus colegas aligeirassem o peso que sempre carregam sobre os ombros e vivessem condignamente. No qual os técnicos sejam mencionados (e pagos) pelo valor incomensurável do seu trabalho. Onde, no mínimo, se não existir mesmo financiamento algum, a bilheteira se divida por todos, honrando horas e dias e meses de esforço coletivo por um objetivo comum. Sim, eu sempre quis fazer parte de um espetáculo.

 

Imaginei as luzes nos olhos. O ressoar de palmas. A euforia trágica que antecede e sucede o fechar do pano. A corrida desenfreada nos camarins. Aquela apneia acompanhada de sopro cardíaco mesmo antes de entrar no palco. É muito o que se ganha a pisar as traves velhas dos teatros e salas de espetáculos. É um ganhar de lotaria muito próprio, que nos enriquece por dentro de um modo tão pleno que nem questionamos que, sem outra moeda de troca, a luz de casa não se acenderá, nem jorrará água da torneira, nem haverá conforto térmico que mimetize o conforto cénico. Nem a companhia da eletricidade, nem a das águas, nem a do gás aceitam pagamento em palmas. São, na verdade, bastante rápidas a vergastar as palmas de mãos vazias, oferecendo degraus para subirmos dessa cave fria, até à rua para morarmos em tendas... se as houver.

 

Dizem, na vossa oferta de emprego que querem emprego de oferta. Dizem que procuram cantores, atores, bailarinos... artistas. Mas o que vocês procuram não são cantores, atores, bailarinos ou artistas... mas escravos. Pessoas que se disponham a ver uma janela de oportunidade na oportunidade sem janela. E eu venho por este meio responder ao vosso anúncio de emprego, sem pedir – que direito tenho?! – que ganhem vergonha na cara. Venho apenas esclarecer que a escravatura foi alegadamente abolida em Portugal no ano 1761, porque estou certa de que poderão não se ter apercebido. Afinal, o tempo passa a correr, sem darmos por ele, quando estamos a explorar os outros...

 

Assinado:

Um artista que paga contas e paga impostos


Marina Ferraz




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terça-feira, 29 de outubro de 2024

Encarregado de educação (uma carta)

Imagem gerada por I.A.

 

Exmo. Sr. Primeiro Ministro

 

Escrevo esta carta porque me sinto profundamente solidário com a sua sensação de descontentamento face à disciplina de Cidadania. Na verdade, esta preocupação é algo que trago comigo há muito tempo e que venho a silenciar pelo medo de represálias. Acredito, pois, que a média escolar do meu encarregado de educação possa ser afetada pela não aprovação na unidade curricular supramencionada.

 

Para que tenha uma noção do que me preocupa, destacarei os aspetos que me parecem mais relevantes neste contexto, desejando que a multiplicidade de temáticas que abordarei não seja demasiado ampla, tornando esta carta demasiado extensa e roubando o seu precioso tempo... bem sabemos que a tarefa de tentar manter um status quo propício às grandes economias e à autoridade do Estado nem sempre é fácil. Tentarei ser tão breve quanto possível!

 

O meu filho encontra-se atualmente no 9º ano, sendo este o seu terceiro ano de contacto com a disciplina de Cidadania. Há algumas semanas, devido a um trabalho de escola, recebemos os seus amigos para um trabalho de grupo. Eram dois rapazes, um caucasiano e lisboeta e outro de pele negra e com sotaque (não sei se nascido cá ou no estrangeiro) e uma moça brasileira que recentemente veio com a mãe viver para Lisboa. Assisti, em choque, à forma simpática como os recebeu à porta e fiquei aterrorizado quando, ao jantar, contou que o seu melhor amigo Marcos era homossexual e namorava com outro colega de turma, e se confessou, ainda, apaixonado pela rapariga brasileira, falando exaustivamente da forma como pretendia convidá-la para o cinema e levar-lhe um ramo de flores nesse dia. Quando falámos sobre a importância da proteção, caso o namoro se efetive, respondeu-nos, sorrindo, que sabe disso, mas ainda não se sente preparado para “voos tão altos”.

 

Esta não foi, ainda assim, a primeira vez que senti o impacto das noções que a escola implantou na mente do meu filho. No 7º ano, para que tenha noção, fomos obrigados a alterar as nossas rotinas e hábitos para integrar a reciclagem no nosso quotidiano e, no ano passado, quase que nos obrigou a ir votar, obrigando-nos, a mim e à mãe, a vestir roupa de sair e a abdicar de parte do nosso domingo que, como possivelmente acredita, é o dia do Senhor e não se deve macular com trabalhos...

 

Por causa da terrível ideologia que estão a passar à nossa criança, imagine, já nem sequer podemos caminhar pelas ruas lisboetas, sem parar para deixar esmola aos sem-abrigo ou sem ouvir, por quilómetros, como o direito à habitação e à saúde são direitos humanos que não estão a ser cumpridos... Além disso, este tipo de preocupação faz com que as suas leituras incluam livros que talvez sejam desadequados, sobre questões sociais e políticas, quando na idade dele eu só lia as aventuras dos Cinco e dos Sete...

 

Senhor Primeiro Ministro, as amarras ideológicas da Cidadania estão a desesperar-nos! Mais ainda porque, apesar de tudo isto, acreditamos verdadeiramente que a média do meu filho será afetada pela nota, que só poderá ser negativa. Afinal, veja lá bem, mesmo com tudo isto ele ainda não cumpriu os objetivos fundamentais da disciplina! Ainda não virou gay, ainda não começou a cometer vandalismo, ainda não se revoltou contra nós e ainda não iniciou precocemente a sua vida sexual...

 

Espero honestamente que, no futuro, consiga colmatar as falhas no sistema educacional, que mais não querem do que prender as crianças a terríveis amarras ideológicas! É que corremos o risco que estes miúdos se tornem bons cidadãos... e, quando votarem, tirem pessoas como você do poleiro a partir do qual prendem as pessoas à necessidade com amarras, sem tempo para ideologias que combatam a tirania.

 

Assinado,

Um encarregado de educação

 

P.S.: Como deve imaginar muitas das passagens desta carta são pura ironia. Quando saí, naquele domingo, por vontade própria e não obrigado pelo meu filho, embora ele aprove, fiz isso com muito orgulho... e não votei em si!


Marina Ferraz




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terça-feira, 22 de outubro de 2024

De compra em compra

 

Imagem gerada por I.A.

Nasci em Junho. Perdoem o narcisismo, mas começo o ano no mês do meu nascimento. O meu aniversário, esse não-feriado, foi, ao longo dos anos, mais um ponto-espelho de tudo o que vai indo de mal a pior com o mundo. Uma espécie de segundo Natal, que começam a celebrar ali à roda do dia da mãe e do 13 de maio... e que alguém acenda uma velinha, que de milagroso este texto nada terá... como bem sabem as entidades competentes, ou eu já teria sido vítima de um qualquer “acidente”...

 

Peço muitas vezes que não me deem presentes de aniversário pelo meu nascimento. Logo eu, que insisto em celebrar ao longo de 7 dias! Quero a pessoa presente e não o presente da pessoa. Quero como dádiva a partilha do momento e não o momento da partilha em dádiva. A pouco e pouco, desvalorizo tudo o que é físico. Sinto os objetos a comerem espaço nas divisões, como quem calcorreia o meu pensamento com uma catana.

 

Este é o dia em que presentes colocados nos meus dedos gratos entoam a sentença anual da nova corrida pelo gasto. Essa que me desgasta. Ainda mal passou o dia de abrir os olhos e já compram martelinhos e farturas de São João, compram as caríssimas férias no Algarve ou no estrangeiro, preparam tudo para garantir a melhor prenda do dia dos avós e gastam fortunas com o regresso às aulas. As lojas ajudam! Dizem que ajudam... Agências de viagens com promoções bombásticas. Entidades de crédito que dão todas as facilidades para qualquer eventualidade, incluindo a sua viagem de sonho. Lojas de roupa que garantem que nenhum jovem entre na escola usando – olhem que horror! – a roupa da coleção passada.

 

Começam as aulas e é hora de preparar o Halloween. Já há decorações e filmes novos no cinema. Já há fatos de fantasia. Já se vê nas ruas uma ocasional saia com morceguinhos, um chapéu de bruxa, dentes de vampiro, sem abrigo (ups, desculpem, texto errado...). E é importante que se comece a preparar o Dia das Bruxas ainda em setembro, sem esquecer as flores e velas para os cemitérios no Dia de Todos os Santos, porque em outubro as lojas têm de se organizar para o Natal. A época mais bonita do ano, onde tudo tem brilho e cor... principalmente as grandes corporações que guardam as moedas e notas verdinhas dos contribuintes: esses alienados que não sabem bem como pagar a renda e os impostos, mas investem fortemente nas decorações mais festivas e nas prendas mais dispendiosas. Folhetos e catálogos dão-nos promoções e sugestões e preços imbatíveis... a superficialidade está cara, mas os cupões ajudam! E, para os mais arrojados, aproveitar os preços de Natal para programar o Ano Novo também não está mal pensado, que é um gasto a mais para se ter um gasto a menos!

 

Vira o ano. 3, 2, 1!!! Feliz ano novo! O ano é novo, mas o hábito é velho... não se perca tempo, que é preciso fazer a reserva ideal para o dia dos namorados, não vão os restaurantes esgotar as suas mesas e levar ao término do amor puro e eterno de dois entes, que morrerão se não fizerem uma refeição inflacionada e mal servida.

 

Mas não! Não nos demoremos a pensar no amor, que amor é por quem nos deu a vida e é preciso comprar a prenda do dia do pai! E pensar que abril também está à porta e que é preciso compensar os nossos afilhados e explorar os nossos padrinhos, comprando ovinhos e amêndoas e coelhinhos, e consolas e smartphones novos. Os mais interventivos podem até aproveitar o embalo para comprar já os cravos plásticos para o 25 de abril que - sabe-se lá como! - conseguiu também tornar-se um feriado comercial. A ironia de se pagar a liberdade com liberdade... ficando sem ela.

 

A roda do ano anda bem oleada e vamos seguindo de compra em compra. Um crédito. Um crédito para pagar o crédito. Um crédito consolidado para ajudar com os vários créditos. Ginástica financeira impossível. E impostos que são sempre aliviados para o 1% que poderia pagá-los... e intensificados para quem se mata para os pagar. Contas vazias. Ilusão de conquista, prenda a prenda. E uma realidade que nos prende. À roda. A mesma. Aquela que interessa só aos que têm Natal todos os dias e a quem nunca falta nada!

 

Começamos a comprar o nosso funeral no dia do nosso nascimento e, mesmo assim, como salienta Fisher citando Fredric Jameson e Slavoj Žižek, "é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo". Olho o ano... poderíamos montar tenda nos centros comerciais, para ao menos poupar em combustível (já que voltou a subir!). É que até Cristo – dizem – morreu e ressuscitou passado três dias... só o filho da puta do capitalismo é que parece ser imortal.

Marina Ferraz




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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Universidade pública

 

Imagem gerada por I.A.

Lisboa, Setembro de 2030

 

A Faculdade Pública de Comunicação, única em funcionamento no país desde a privatização das demais instituições de ensino superior, vem por este meio dar conhecimento da abertura de 200 vagas para a Licenciatura em Jornalismo Manso. As candidaturas deverão ser enviadas apenas por alunos de sobrenome Carneiro, que residam na cidade ou que provenham de outras regiões do país, contando que tenham capacidade financeira para suportar a renda de mil euros por quarto, sendo que esta é a avença mais reduzida que atualmente vigora na capital. Alunos cujo IRS familiar não comprove a sua capacidade financeira para suportar a sua estadia não serão considerados para as vagas.

 

O programa deste curso tem uma componente teórica e uma componente prática, com o objetivo de promover a higienização mental e fornecer capacidades efetivas, em campo, sem recurso a instrumentos de apoio nocivos, como auriculares. Lecionadas por comandantes das mui nobres forças armadas portuguesas e fundamentais figuras do clérigo, as aulas iniciar-se-ão com um momento de oração, no qual se promoverá o conceito de família tradicional, garantindo que os alunos não estão sujeitos à pressão para enviesar a sua moral para atividades divergentes e moralmente incorretas.

 

Além das aulas de frequência obrigatória como “A História do Jornalismo Manso”, “Fontes Oficiais e Pesquisa Breve” ou “Media ao Serviço da Economia Política”, que visam a manutenção do status quo e da ordem natural da vida nacional na construção de textos e criação de conteúdos audiovisuais, haverá também uma seleção de unidades curriculares opcionais, de entre as quais o estudante deverá escolher 2, e que são: “Escrita para Imprensa Mansa”, “Técnicas Passivas de Jornalismo”, “Psicologia da Apatia Social Induzida”, “Comunicação de Ciência Irrefutável”, “Técnicas para Silenciar Debates” e “Media e Serviço ao Governo”.

 

Ao longo do ano serão ainda promovidos vários workshops, lecionados por figuras incontornáveis do Estado, que darão a conhecer as principais razões pelas quais um jornalismo pacato e baseado apenas nas fontes oficiais de informação é importante, destacando ainda a importância de não buscar o contraditório para qualquer notícia relacionada com a ação governamental.

 

É objetivo que, através de um regime de Bolonha, agora atualizado para apenas 2 anos de estudos, os alunos consigam atingir um nível de excelência no jornalismo manso, que permita aos mui nobres regentes desta nação democrática atuar de forma a potenciar a eficiência administrativa do Estado, para benefício das camadas sociais com maior poder aquisitivo.

 

Para os alunos que cumpram os requisitos, haverá a possibilidade de estágio numa das cadeias de televisão e rádio privadas, com as quais o Estado mantém estreita parceria.

 

P.S: Devem ser pagas à cabeça 3 mensalidades de propina e duas de caução, apresentando ainda um fiador no momento da inscrição.

 

Enviem as vossas candidaturas para: nãoserevoltemnão@depoisqueixem-se.pt


Marina Ferraz




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terça-feira, 8 de outubro de 2024

A mistura

 

Imagem gerada por I.A.

Quando eu era pequena, a minha mãe preparava-me uma taça de Cerelac ou Nestum de Chocolate para o pequeno-almoço. (Não, este texto não é patrocinado pela Nestlé.) Havia semanas que recebia um, semanas em que recebia outro... e dias raros nos quais tinha, de presente, esperando por mim na cozinha, uma taça de mistura. Nesses dias, a taça tinha um aspeto de Stracciatella e, para melhorar a sensação que me trazia, o Cerelac formava ainda, como acontecia nos dias em que vinha a solo, pequenos grumos deliciosos por entre a cremosidade do resto da mistura.

 

Isto fazia-me feliz. Os grumos eram a parte do Cerelac que deixava para o fim, deliciando-me com a textura e o sabor dos novelinhos granulados. O dia da mistura era diferente e especial.

 

Nos meus olhos de criança, a minha mãe tinha o cuidado de preparar a papa como eu gostava e a atenção de me premiar, de tempos a tempos, com uma delícia nova, de sabor lácteo ponteado a chocolate. E eu, que a amava por mil outras razões, amava-a também por isso. Porque era a cuidadora carinhosa que me deixava, a cada manhã, aquele presente sobre a mesa, para que eu começasse o dia a sorrir.

 

Demorei muito tempo a saber que a mistura era o aproveitamento do resto do pacote, que não chegava para uma refeição, com o novo, para que se poupasse. Demorei muito a saber que os grumos eram a corrida sem tempo de uma mulher que tinha mais dois filhos para cuidar e que tinha de deixar todos na escola e cuidar das tarefas.

 

Hoje, o meu pequeno-almoço é um café afogado em (demasiado) açúcar com canela em pó. Mas ainda faço as papas às vezes, para o lanche ou um almoço ocasional. Como o meu Cerelac com grumos e gosto particularmente quando tenho um pacote no fim e outro a começar, para fazer a mistura. Estranho, ainda assim, que não tenham o mesmo sabor de que me recordo nas manhãs da infância. E, de todas as vezes, percebo que a memória doce não é a do pequeno-almoço, mas a da minha mãe, que mo servia, fazendo-me acreditar, sem dizer nada, que tudo aquilo era por e para mim.

 

A minha mãe nunca me disse que deixava os grumos por minha causa. Também nunca me disse que fazia a mistura porque eu gostava. Eu assumi isso. Porque tudo o que ela fazia era por mim, e eu não achei que as caraterísticas do meu pequeno-almoço tivessem qualquer diferença. Espantei-me, por isso, quando ela me disse que só fazia a mistura para aproveitar e que deixava os grumos porque não tinha tempo.

 

É uma coisa engraçada. Eu não me lembro de ela não ter tempo. Eu não me lembro de ela cortar em algo para poupar. O que eu me lembro é que ela me fazia o pequeno-almoço. E no simples gesto de o fazer, me fazia sentir a menina mais especial do mundo.

 

Quando me deixava na escola, dizendo adeus através do vidro do carro, eu queria a hora em que me viesse buscar... e às vezes, porque ela estava cansada, jantávamos piza. E sim... eu também achava que era só por eu gostar e não porque o dia a desgastara até ao limite!

 

O mundo cabia no amor. E nem que o mundo real estivesse todo a explodir lá fora, ela transformava essa realidade para criar uma bolha só nossa, protegendo a minha inocência a todo o custo.

 

Tudo isto para dizer o seguinte... Atrás dos gestos de amor, houve empenho e esforço, corrida e cansaço. Houve o mundo a desabar. Houve desespero e descontentamento e dificuldade. Tentarei não me esquecer disto. Mesmo hoje, quando o mundo real está todo a explodir e eu estou cansada. Porque é exatamente assim que quero dar-me aos outros. Porque é exatamente assim que quero viver a vida. Com um pouco de amor em cada gesto, como se os gestos fossem perfeitos... e não se fizessem acompanhar de tudo o que vai menos bem em mim...

 

Possa esta bolha servir para proteger a inocência das crianças.

 

Possa este texto abrir os olhos dos adultos.

 

Possa o futuro ser como o dia da mistura. Feliz-feliz.


Marina Ferraz




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terça-feira, 1 de outubro de 2024

Português suave

 


O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Normalmente tinha a navalha no bolso, o sorriso no rosto e um cigarro na mão, quer o fumasse ou o usasse para ver o mundo através do fumo, senhor desse ponteiro aceso. Era um português suave a fumar Português Suave.

 

O cigarro do meu avô não era só um vício de nicotina. Era um gesto vicioso mais amplo. Uma rotina alicerçada no prazer. Um espaço de partilha. Fazia-se acompanhar da frase, que repetia à minha mãe, feito bênção, quando ela começava a levantar a mesa do almoço. Deixa lá isso e senta-te aí, fuma comigo.

 

Ela sentava-se e fumava com ele. Nessas alturas, ao lado do cinzeiro, o líquido âmbar, sorvido de forma lenta e eficaz, fazia do copo largo o amante improvável das beatas. E eu brincava. E eu corria. E eu olhava, imitando os gestos com os meus cigarros de chocolate, que na altura não eram proibidos nem anti didáticos, e que acabaram por nem me transformar numa fumadora real, nem me trazer diabetes...

 

O meu avô tinha o sorriso doce. Ia dormir a sesta. Acordava com energia suficiente para que víssemos filmes de domingo à tarde e jogássemos dominó... tudo ao mesmo tempo. Tinha livros policiais sempre pousados na mesa. E também esses livros eram amantes inveterados do cinzeiro, onde ia apagando sucessivos cigarros, que sorvia com paixão, com a trama na mente.

 

Era um homem do campo, com a quarta classe. Um homem que trazia os traços boémios da juventude, vincados em cada ruga de expressão. A Liberdade, da qual talvez desdenhasse um pouco, era a mesma evocava em gestos. Nunca se negou nada. Fumou cada cigarro com ânsia e sorveu com igual paixão alimentos, bebidas, amores e desejos.

 

O meu avô foi imortal até tocar o telefone. Mas uma noite, o telefone tocou. O toque do telefone é horrível. Feio. Ecoa pela noite como uma promessa estridente de silêncio.

 

Hoje, a minha mãe não fuma e ninguém a impede de arrumar a mesa depois do almoço.

 

O quiosque onde o meu avô ia fechou algum tempo depois de ele morrer... e eu acho que foi por isso. Que o negócio do tabaco só sobrevive quando se fuma. Vive da morte dos outros, mas só até os matar.

 

Já não se vendem cigarros de chocolate. E eu já não sei se consigo jogar dominó e ver televisão ao mesmo tempo... porque raramente jogo dominó e não tenho televisão.

 

Sei que inalei muito fumo e muito amor junto desse português suave, que não era tabaco, mas gente...

 

E, porque não quero que o toque do telefone tenha sido o carrasco da imortalidade do meu avô, aqui estou. A falar sobre ele, outra vez, na data da sua morte. Para que a memória não seja como aquelas beatas no cigarro, que o copo de whiskey e os romances da Agatha Christie namoravam.

 

 

O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Eu carrego sempre comigo a memória suave, num maço de histórias para contar. E um pouco do mau feitio. E um sorriso doce, às vezes. Não há herança mais bonita.

Marina Ferraz




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quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Informação

 

Imagem retirada da web | Pixabay

Informamos os nossos clientes e amigos de que os textos fáceis estão esgotados e que na prateleira da paciência sobram apenas uma ou duas palavras amenas a granel. Para artigos alegres e jubilosos, recomendamos que procurem junto dos nossos concorrentes ou que voltem depois do transplante de personalidade.

Cordialmente,

A Gerência.

 

É! Talvez desconfiassem. Mas eu falo de mim na terceira pessoa do plural. Eu sou eu e todos os eus que me povoam. Incluindo aquele incómodo desconforto que se alojou no quinto andar do meu interior, mesmo na linha da olheira, e que não para de enviar cartas formais a queixar-se das infiltrações e do cansaço. Já o levei ao psicólogo. Psicólogos. Unanimemente disseram-me que tirasse férias, porque não entendem que não é o trabalho que me cansa... mas a vida.

 

É um lidar com contas que acumulam, um pagar de impostos injustos, que só servem os interesses de quem já tem tudo e quer mais, uma insegurança de tempo inteiro que permeia os textos que escrevo para os clientes... medo nas entrelinhas de cada um deles... É um lidar com pessoas que querem de mim o que não tenho para dar. Um lidar com gente que dá mais do que eu posso aceitar. E um ir... frequentemente vendo as nuances da morte nas histórias dos planos que fiz, como se eles não fossem mais do que uma ilusão.

 

Olho para as paredes da casa. Chegou o outono. As folhas lá fora mudam de tonalidade e as paredes também. Com a chuva. Não é só o inquilino da minha linha das olheiras que tem problemas com a humidade...

 

Saio para pedir um pouco de amor e recebo dúvida. Dou por mim a não sentir muita vontade de escrever. E alguém me pede um texto leve e feliz. Tento ir ali ao lado livrar-me da tonelada e meia que trago em cima dos ombros, para as mãos serem leves. Mas desisto! Ali ao lado há gente que não tem humidade em casa, porque não tem casa. Chegou o outono e as pessoas caem como as folhas. Dói.

 

As notícias são da guerra, da fome, do sofrimento. A televisão é a Caixa de Pandora que todos abrimos. E, nas escolas, tentam ensinar às crianças as orações. Subordinadas e coordenadas com todos os interesses políticos e económicos do dia. Santa Economia, Mãe das Decisões Políticas, ajuda-me nesta hora, para que consiga trabalhar de sol a sol na tua guarida, para pagar as tuas exigências e morrer sem dívidas. Amén. As crianças trilham o caminho das pedras para um futuro sem futuro. Aprendendo obras fundamentais cujos resumos decoram e as mensagens descuram... como é desejável que se faça, que as interpretações são frequentemente inimigas do status quo.

 

Atraso a publicação deste texto porque o inquilino do terceiro andar vive a queixar-se de dor, entre sístole e diástole. Os médicos dizem que é crónico. Ou diriam se o SNS ainda existisse de facto. Como não existe, supõe-se que o dissessem... num mundo onde os nossos impostos servissem efetivamente para alguma coisa socialmente proveitosa. Acalmo-o com um poema ou dois, daqueles que vêm de brinde com os bollycaos. Mas, no fim, ele deixa o bolo e come só o caos... e a dor permanece.

 

Todos nós. Eu e estes inquilinos de mim. Todos estamos a fazer liquidação total da secção das superficialidades. Foi assim que os textos fáceis esgotaram e que esgotarão também as palavras amenas. Estamos a pensar abrir um negócio mais adequado aos tempos. Mais adequado ao amargo do caos que comemos e do mundo que nos abriga, por agora numa casa com humidade... mas numa casa... esse privilégio dado a cada vez menos pessoas.

 

Então, este é o meu pedido e recomendação, principalmente para quem me diz que devia escrever coisas mais otimistas, mas também para todos os que o pensam e não o dizem: Para artigos alegres e jubilosos, procurem junto dos nossos concorrentes ou voltem depois do transplante de personalidade.

 

Desde já agradeço a compreensão, embora ela também esteja em falta nas prateleiras do mundo de hoje.


Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de setembro de 2024

Incêndio

 

Imagem gerada por I.A.

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Porque escrevo. Porque me habituei à rotina de ter textos à terça-feira. Planeava publicá-lo às sete. Então escrevi-o na mente, aguardando a hora de me render às teclas do computador, para o debitar, libertando-o das amarras do pensamento e desfiando as ideias pelas linhas direitinhas do editor de texto, em Times New Roman, 11.

 

Sim. O meu texto estava escrito na minha mente. Mas tinha-o pousado sobre as ervas frescas da esperança, verdes. E as ervas verdes ficavam sobre solo rico de minério.

 

Desculpem. Eu ia publicar um texto. Hoje. Porque é terça-feira. Mas o meu texto não interessa a quem quer escavar o solo para colher opulência e abrir campas.

 

Hoje não tenho texto. Atearam o fogo. Ardeu.

 

Sobrou o fumo. A cinza. O cheiro nauseabundo da morte. Um pensamento disperso. Um cansaço imenso. Olhos alagados. E um pouco de raiva quente. Para um próximo texto.


Marina Ferraz




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