Hoje estou vestida de tristeza. Logo eu, imaginem, que sou tão inapta para ser triste, ainda que tenha passado a vida inteira a treinar...
A voz da minha mãe interrompeu o sinal de chamada poucos segundos depois de ter clicado no ícone verde do ecrã. Foi casualmente que me cumprimentou. Casualmente, porque a rotina é essa. Porque falamos todos os dias. Porque o cordão umbilical foi mal cortado, e nenhuma das duas quis confessá-lo ao médico. Deixámos que ficasse assim. Ligando-nos, invisivelmente, de uma forma tão profunda que, ainda que tentássemos explicar, não seria entendida. Mas também não queremos explicar... Na nossa fala de meias palavras entendemo-nos plenamente. Um trejeito é uma resposta de três páginas. E a conversa avança depressa, por isso, para coisas menos importantes, já que o importante fica dito no que nem é dito.
“Então o Carnaval?”, pergunta-me.
“Um dia igual aos outros...”, respondo. Ouço-a sorrir e não espanto que não se espante.
“Eu também não ligo, mas há pessoas que ligam mesmo muito.” – Breve silêncio. – “Acabo de ouvir numa reportagem pessoas que dizem que é o único dia em que se podem sentir elas próprias...”
Sou acometida por um profundo sentimento de tristeza. Há pessoas que dizem que o Carnaval é o único dia em que podem ser quem são, quem sentem que são. Engulo em seco. Sem saber se quero apontar dedos ao mundo que subjuga as pessoas ou às pessoas que se deixam subjugar pelo mundo.
“É muito triste...”, digo. Ela concorda.
“É mesmo”.
Despedimo-nos. Iguais a nós mesmas. Ela, mulher que já largou a menina que se deixava vergar, mas nunca a convenção aprendida. Eu, mulher que apimentou a menina que já não se deixava vergar, e que se está a cagar para a convenção. Mas, no fim da chamada, eu que raramente me costumo mascarar pelo Carnaval, estava vestida de tristeza. Logo eu, imaginem, que sou tão inapta para ser triste, ainda que tenha passado a vida inteira a treinar para o ser...
Tenho a sorte. A honra. (A ousadia?) Essa. De ser eu. De ser quem sinto que sou. Tanto, que não tenho a certeza se o meu eu amanhã será o eu de hoje. Habituei-me a não me negar. Faço sentido para poucos. Sou a miúda dos textos, que às vezes não escreve. A mulher que anda de fato de treino ou de saltos altos. A fadinha. O monstro. A pessoa que treina todos os dias. A sedentária. A pessoa que come saudável. A pessoa que enfarda fritos. Sou, a cada momento, precisamente o que me apetece. (E o médico já me avisou que, provavelmente, vou morrer disso. Altura em que fui a pessoa que o informou que é bom saber, porque toda a gente sabe que morre e poucos sabem de quê...)
Por entre o meu eu a ser eu acho que me desabituei da ideia do ajuste. E, de algum modo, foi como se a constatação do óbvio fosse uma novidade muito amarga, que trinquei a seco. As pessoas não sentem que podem ser quem são.
É Carnaval. Vestida de tristeza, mergulho em mim para escrever este texto. Nele, crio agora um universo de utopia, onde as pessoas pudessem, todos os dias, ser homem, ou mulher, ou cowboy, ou coelhinha da playboy, ou figura de ação. Principalmente figura de ação, agindo contra o socialmente correto e o politicamente aceitável que lhes rouba a vida.
“As pessoas têm medo.” Dizem-me.
Eu também tenho. Não do mesmo, obviamente... porque tenho muito medo de só poder ser eu mesma um dia por ano...
Sei que não há nada que diga que faça alguém entender.
Exceto à minha mãe. A quem não preciso de dizer nada. Porque entende...
Calha bem não ter de dizer nada... porque hoje é Carnaval. Estou vestida de tristeza.
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