Eu tinha um amigo. O meu amigo tinha os olhos verdes.
Inclinava a cabeça para a direita quando se ria. Falava sempre de forma mais
cortês e mais formal com aqueles de quem não gostava. Usava a ironia com
frequência mas nunca como arma de arremesso. Usava-a em tom de brincadeira,
qual insinuação tola de criança grande. E fazia sorrir toda a gente com quem se
cruzava.
Eu tinha um amigo.
Eu tinha um amigo. O meu amigo tinha casado com uma mulher
ruiva, franzina, cheia de sardas acastanhadas junto ao nariz. Todas as noites,
junto à fogueira, tirava a fotografia dela do bolso e dizia: "Eis a mulher
mais bonita do mundo". Nunca a achei particularmente bonita mas, noite
após noite, olhando a fotografia, iluminada pelo fogo, aprendi que a beleza era
apenas um dos nomes da paixão. "É por ela que ainda vou voltar vivo para
casa", dizia-me. E eu anuía.
Eu tinha um amigo.
Eu tinha um amigo. O meu amigo tinha uma fé mas nunca, nem
por uma vez, o ouvi confessar o credo num tom de intolerância. Pouco falava de
Deus. Era um homem, entre homens, na luta constante por ser um homem melhor.
Dos céus, retirara a lição fundamental: o amor. E, desse amor, fizera crença.
Dava-o a toda a gente. Mesmo àqueles que tomávamos por inimigos. Não odiava
ninguém. Os nossos colegas diziam: "Estás no sitio errado". Eu nunca
lho disse. Mas concordava. Podia ter-lhe dito: "Estás no mundo
errado".
Eu tinha um amigo.
Eu tinha um amigo. Um dia abriram fogo sobre o nosso campo. "Os
outros". Era esse o nome que lhes davam. Tinham outra nacionalidade. Outra
cor. Outra religião. Mas, à medida que se aproximavam, com armas nas mãos, eles
não me pareciam "outros". Eram iguais a nós. Também tinham duas
pernas, dois braços, dois olhos. E, nas mãos, como nós, tinham armas. Desde
quando é que as armas eram uma parte de nós? Desde quando é que nós também
eramos "os outros"? Questionei a violência. Bloqueei o instinto que
me pedia para sobreviver. Baixei a arma. Dei o peito às balas.
Mas eu tinha um amigo.
Eu tinha um amigo. O meu amigo protegeu-me com o próprio
corpo. Quando caiu, tinha os olhos verdes abertos e sangue nos lábios. Numa
mão, agarrava a fotografia da mulher mais bonita do mundo. Na outra, segurava a
arma que nunca disparou. Não voltou para casa. E vieram palavras cruas, cheias
de ódio. "Os outros, os outros". Mas a culpa não foi d' "os
outros". A culpa foi de quem julga que podem travar-se guerras de poder
sob o disfarce da diferença. Nós também somos "os outros". Somos
todos "os outros". E não há "outros". Não somos uma nacionalidade.
Não somos uma crença. Não somos um tom de pele. Somos humanos. Somos homens.
Eramos homens, até nos fazermos monstros, atrás de armas de fogo.
Eu tinha um amigo. Chamam-lhe herói. Não era um herói. Era
um homem bom e forte. Completo e cheio de vida. Diz-se por aí que, na guerra,
caem primeiro os mais fracos. Eu discordo. Os primeiros a tombar são os justos,
os bons, aqueles que faziam do mundo um lugar melhor.
Eu tinha um amigo.
Hoje tenho memórias. Palavras por dizer. Saudades.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
Música e Letra de Helder Godinho
Sigam a página do músico AQUI
Texto magnífico! Caiu-me as lágrimas...
ResponderEliminarlindo viagei e chorei muito profundoo
ResponderEliminar