Para a minha companheira Ali,
No primeiro dia, esperavas junto à porta. E deixaste que me
aproximasse de ti. Que te depositasse um toque de calor entre as orelhas.
Deixaste que o fizesse e, altivamente, levantaste-te com calma, viraste costas,
mudaste de divisão.
Estipulámos os termos: no centro das paredes de uma casa que
era tua – e ainda não minha – eras tu que ditavas as regras. Cabia-me
cumpri-las. E cumpri.
Habituei-me a povoar a sala. Com uma manta sobre as pernas
friorentas. E outra ao lado. E não te deitavas ao meu lado. Deitavas-te lá, na
outra ponta do sofá. E depois no meio do sofá. Todos os dias. Um bocadinho mais
perto. Sempre ali. Nos teus termos. Até que, um dia, encostando o focinho
contra a minha perna, te senti os tremores na delonga da felicidade. E fui
depositando festas no teu lombo, à medida que te contorcias. Havia um sorriso
nos teus olhos.
Nunca precisámos de palavras para nos entendermos. Do teu
mau feitio eu li, não só a personalidade intensa, como também a doença que
acabaria por se confirmar. Mas tínhamos um pacto, tu e eu, o pacto de calar
muitas mágoas com sorrisos e goluseimas de frango ou peixe.
Não eras fácil. Muito longe disso. Ter a casa à minha
maneira contigo por perto era impossível. Porquê? Porque não era a minha casa.
Era a tua. Nos teus termos. E, de alguma forma, era bom estar em tua casa e
servir um pouco destes interesses mal humorados que sempre pagavas, em medidas
de amor, de carinho e de companheirismo.
Ficámos só as duas muitas vezes, olhando pelas janelas.
Contando flores e partilhando horas como se fossem pequenos tesouros. E, quando
não estavas ao meu lado, ficava a ouvir-te o tiquetaquear dos passos pela casa. Um som que
fez de banda sonora a tantos e tantos momentos da vida.
Pela manhã, trepavas para as costas do teu dono.
Aninhavas-te ali. Uma imagem de doçura, por entre a cama desfeita, com ele
bebendo o café e contigo a dizeres bom dia. E, olhando nos meus olhos,
semicerravas os teus e abrias de novo. Um “gosto de ti” em linguagem sem voz,
que eu repetia, em silêncio.
Foi sempre nos teus termos. E, por isso, nem nunca gritaste
por aí que me adoravas, nem eu a ti. Habituámo-nos, simplesmente, a senti-lo,
partilhando um segredo. No nosso mau feitio, nunca achámos que alguém tivesse
algo a ver com isso.
Ficaste mais doente. Levei-te ao médico e ele tirou-te a
doença. E saí de lá a sorrir, na perspetiva de ter a tua companhia por muitos e
muitos anos. Mas, não contente com o dano já causado, esse tumor estendeu os
dedos até que eles te preenchessem por dentro. E, de súbito, ouvir-te respirar
doía como facas no coração. Confirmámos as suspeitas e soubemos. Não tínhamos
muito tempo na tua companhia.
Eras forte e sabias o que querias. Ditaste sempre as normas,
na casa que era tua. Eras guerreira e tinhas nascido para vencer. Não pude
ver-te perder essa batalha contra a doença. E decidi, porque te conheço,
cumprir o desejo dos olhos que pediam para não sofrer mais.
Fica-me uma casa vazia. Sem o tiquetaquear das tuas patinhas
pelo soalho. Sem o pedido, quase mudo, pelas goluseimas. Fica-me uma casa sem
dono. Uma casa na qual as normas adormeceram e as dúvidas se somam, cantando na
voz da ausência.
Ficam-me a saudade, em dois beijos depositados sobre o pelo
e com as palavras “vai ficar tudo bem, princesa”. Disse-as. Acreditando nelas.
E incapaz de olhar para ti, com medo de ceder ao egoísmo que não me tolerarias.
Deixei-te ir. Vitoriosa e nos teus termos. Não podia ser de outra maneira.
Fico à tua espera, na dimensão astral. Adoro-te e quero crer
que, todos os dias, te vais sentar comigo no sofá. Cada dia, um bocadinho mais
perto. Até que a doença me leve também para eu viver pela eternidade. Ao teu
lado. Depositando um toque de calor entre as tuas orelhas. Se me deres essa
honra. Porque foi e há-de ser sempre tudo nos teus termos.
Até já, Ali
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