O meu bisavô costumava dizê-lo. Cautela e caldo de galinha
nunca fez mal a ninguém. Disse-o, provavelmente, porque o seu pai lho dizia. E
lhe bebeu as palavras, juntamente com o caldo e a cautela.
No tempo do meu bisavô era tudo diferente. Até a galinha,
que não nascia, ainda, depenada e encolhida nas cuvetes de supermercado. Até o
caldo, que era rico e aromático, parco de sal mas repleto de sabores do campo.
Até a cautela, que se estendia por ruas onde não passavam tantos carros como
maus-olhados. Mas era um conselho intemporal, deixado pelo seu pai, que o
ouvira do pai dele. E que se repetiu até me chegar. Servido com requinte num
prato dourado de muitos passados, na forma de cautela e de caldo de galinha.
Foi um dito que, de tão intrinsecamente nosso, nos moldou
ações e nos definiu rumos. Às vezes de maneira espalhafatosa, evidente; mas
outras de forma subtil e amena. Foi um dito que se estendeu nos limites murados
das nossas peles e nos tornou monstros entre os humanos, cuja cautela é parca e
o caldo de galinha não serve.
Na intempestividade das almas modernas, ter cautela já não
significa não ir. Porque seria impossível a resistência perante a impulsão
audaciosa da aventura e da concretização. Significa ir, por vezes devagar, por
vezes a correr. E aceitar os trilhos como caminho, sabendo-os sinuosos e cheios
de pedras e abismos. E abraçar essas pedras e esses abismos, até que sejam
parte de nós. Fazer deles amigos de longa data, sabendo que é entre os homens e
as mulheres que se encontram as barreiras. E acautelando, por isso mesmo, os
contactos humanos.
Se nos fere a alma o encontro com a desonestidade e a
pobreza de espírito, logo surge um novo acordo eminente. O de aquecer por
dentro o que se resguarda longe do olhar alheio, com palavras de alento e
caldos de galinha. E neles se curam mágoas. Como se ondeasse, no líquido turvo
da tigela, também o conselho que o meu bisavô deu à minha avó e que ela me deu: "Cautela e caldo de galinha nunca fez mal a ninguém".
Levo o conselho comigo. Nas minhas aventuras. Até ao lugar
louco onde a cautela, no seu sentido mais lato, não me permitiria chegar. E, ao
levá-la, assumo o risco consciente de que posso ficar doente por entre estes
mundos, repletos de gente que não teve um bisavô de sábio conselho. Mas vou.
Com cautela mas sem medo. Porque é indo que me faço digna das palavras que me
chegaram.
E se, no caminho, pedras, abismos ou gentes, cortarem em
pedaços a chama da minha intencionalidade e a ferida alastrar pelas
ramificações da alma? – perguntaria alguém, em nome da cautela. Sorrio. Não
será nada que a cautela e um caldo de galinha não curem. E, se não curarem…
também nunca fizeram mal a ninguém.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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