Para o meu avô
Ainda me sento contigo à mesa. Puxamos os dois para o canto
a toalha que nunca nos fez a vontade e a fruteira. E sentamo-nos. Lado a lado.
A toalha é, hoje, a ideia da morte. E a fruteira é a sanidade. Mas não faz mal.
Sentamo-nos na mesa do meu pensamento. E continuamos a conversa que deixámos a
meio ontem. Sobre tudo e nada. Um pouco mais sobre tudo. Porque não há espaços
para vazios quando estamos juntos.
Queres saber de mim. Eu não quero falar sobre mim. E faço
café. Em vez de falar. Também queres um. E eu sirvo-to com agrado. Levo o
açucareiro para a mesa. Depositas três colheres bem cheias, que fazem
estremecer a espuma ligeira do topo, até que disperse. E ficas à espera que
assente no fundo o açúcar e que eu te responda à pergunta. Saberás, talvez, a
resposta melhor do que ninguém. Bebemos o café. Nunca gostei de falar de mim.
Mas tu entendes. Eu saio a alguém. E o café aquece as almas.
De chávenas na mão, olhamos para o líquido. Procuramos
respostas. E vejo que levas aos lábios o amargo do café que não mexeste. Mexo o
meu mas, neste dia, sabe-me também amargo. Sabe a saudade. Uma saudade intolerante
e ausente que tem, no fundo, por mexer, três colheres cheias de açúcar.
Perguntei-te, certa vez, por que punhas tanto açúcar no
café, se mal o mexias e o bebias amargo. Respondeste que guardavas o melhor
para o fim. Assim, poeta do dia-a-dia, com toda a simplicidade,
ensinaste-me para a vida. Primeiro o amargo, depois o doce. Como o trabalho e o
sucesso. O esforço e a conquista. A luta e a concretização. A saudade e o
reencontro.
Hoje sento-me contigo na mesa do meu pensamento. Puxamos
para o lado a ideia da morte e a sanidade. Damos as mãos em silêncio. E, para
que as respostas sejam dadas pelos olhos que se quedam sempre na ideia da
despedida, eu vou pôr a cafeteira ao lume. E sirvo duas chávenas de café. Uma
para ti. Uma para mim.
Exagero no açúcar no café. Mal o mexo. Deixo o melhor para o
fim. Primeiro bebo o café. Depois o açúcar. E, no finzinho, bebo a memória que
me prende a ti. No final, entre amargo e doce e eternidade, o café sabe a amor.
E é um amor que nos deixa sentar. Na mesa. Esta mesa. Nela,
puxamos para o lado a ideia da morte, em forma de toalha. E a sanidade, em
forma de fruteira. Partilhamos este momento, repetindo-o, casualmente, sempre
que a saudade aperta. E bebemos. Primeiro o café. Depois o açúcar. Depois o
amor. Porquê? Porque guardamos o melhor para o fim. E o melhor é isto. Isto que
ninguém sabe. Mas que é quente e doce. E meu. E teu. E que te mantém vivo e
presente. Explicando-me a vida como quem explica o açúcar no café amargo.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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