Foi há muitos anos atrás. No seio frio de um país estranho.
Acompanhada por duas crianças que ainda mal dominavam o português, que eu
insisti, pela primeira vez, numa ideia: “Je suis portugaise et je ne parle pas
français. Je suis perdu.”
Elas aprenderam as palavras, sem saberem bem o que
significavam. Pela repetição. Como as crianças sempre aprendem. Mas e eu? Será
que eu sabia o que elas significavam?
Dou por mim. Hoje. No seio do meu próprio país. Adulta –
serei?! – e a pensar se domino palavras e emoções. Se compreendo, de facto, o
que se esconde por detrás delas. O que as transforma em mais do que formas
codificadas numa ilusão feita de papel.
Há, no meu peito, dimensões de inexplicável que são como uma
língua estrangeira que eu não domino. E salta-me, nos ouvidos, novamente a
expressão “Je suis perdu.”.
Compreendo hoje que não sabia, na altura, o que significava
a frase que ensinei. Era só uma adulta a aprendê-la pela repetição, como se
fosse criança, tentando ensiná-la para acautelar o medo do improvável.
Prevenir uma situação em aquelas crianças pudessem ficar em
perigo tomou a forma de uma frase que eu não sabia entender. “Je suis
portugaise”… eu sou portuguesa… “et je ne parle pas français”… e eu não falo francês. Até aqui, eu entendia.
Mas faltava-me a estrutura emocional para compreender o que significava o
resto. Faltava-me o abalo que só a vida pode trazer para explicar
verdadeiramente as palavras. Essas palavras. “Je suis perdu”.
Sinto-me, hoje, de pés postos no conhecimento dos dias, que
me trespassa, qual idioma antigo e morto, um sentimento de alheamento a mim
mesma. Como se os passos me afastassem de mim. De ti. Do sonho. Do que eu possa
querer sonhar. Não sei bem de onde vim. Não faço ideia de como aqui cheguei.
Sigo. E não sei para onde. Não sei porquê. Não sei por quem. Je suis perdu.
Pela primeira vez compreendo. Sem ninguém que me repita a
frase, para que a decore. Intrinsecamente. Compreendo o que significa. Estar
perdido. É como ser eu a criança nas ruas de Paris. Subitamente, não é como se
não conhecesse a rua e não tivesse as mãos quentes dos meus pais. Subitamente,
é como se não tivesse ruas. Como se Paris tivesse sido roubado debaixo dos meus
pés e caminhasse na bruma etérea do Sena. Não falo esta língua. Não sei de onde
sou. Peço ajuda. Je suis perdu. Je suis perdu. Mas ninguém ouve. Não há ninguém
para ouvir.
Cada passo é uma queda no abismo. Je suis perdu. E cada
abismo é um salto na esperança que se esgota. Je suis perdu. E cada palavra faz
um sentido novo nesta senda de nada fazer sentido. Je suis perdu. Je suis
perdu.
Foi há muitos anos atrás. No seio frio de um país estranho.
Acompanhada por duas crianças que ainda mal dominavam o português, que eu
insisti, pela primeira vez, numa ideia: “Je suis portugaise et je ne parle pas français.
Je suis perdu.” Elas aprenderam as palavras, sem saberem bem o que
significavam. E eu também não sabia. Não sabia o que significava. A frase. Essa
frase. Je suis perdu. Agora sei. E quem me dera não saber.
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