terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A fonte da minha cidade

Autor da foto: José Luis Filpo Cabana

Na fonte da minha cidade há o salário de um ministro em moedas enegrecidas. Todas elas foram atiradas sobre o ombro direito, como manda a tradição. Desejos mudos, eternamente condecorados pela efemeridade do momento.

Ao lado da fonte, o Senhor Roberto pede esmola. Tem sempre o copo vazio, pousado ao lado do saco velho, onde guarda tesouros de cartão e lata. E rugas no rosto. Manchas do sol na pele. Uma palidez na debilidade da voz que amornece um pouco a cada dia.

Não tem destreza para se debruçar sobre a fonte e esticar a mão até às moedas que lhe pagariam uma refeição quente pela primeira vez naquela semana mas também não se importa de não ter. Não quer pagar o alimento com os sonhos de ninguém.

Calha a fonte da minha cidade ser mesmo em frente à Câmara Municipal. Por ela passam, de fato engomado e gravata, aqueles senhores de pasta de executivo, cujo nome não importa, posto que todos lhe chamam “senhor doutor”. Na sua maioria não têm doutoramento. E, alguns, se tiverem licenciatura, foi provavelmente às custas dos pais que pobres eram e pobres permanecem, numa aldeia qualquer, sem terem dos filhos nem visita, nem telefonema.

Os sonhos que construíram, sobre os ombros dos pais, são como as moedas que pintam o fundo da fonte. Também ninguém lhes toca. Nem mesmo eles, que se esqueceram, algures, de que os sonhos são mais do que zeros à direita, antes da vírgula.

Poderiam, talvez, ter tido o sonho de tirar das ruas todos os Senhores Robertos. Mas sonhos desses não cabem nas pequenas malas de executivo onde se acumulam vouchers de férias, acordos confidenciais com fundos em contas offshore e bilhetes secretos das amantes.

Os desafortunados têm a sorte de sonhar. São eles que se despedem das moedas que pintam o fundo da fonte. Os ricos trocaram os sonhos por outra coisa. E é nela que se deixam afundar, sem a noção de que os ossos que ficam por debaixo das carnes rechonchudas vão virar pó na mesma terra que acolhe os de todos os outros.

A Dona Maria não teve muita sorte na vida. Talvez por isso ainda tenha sonhos. Tirar o Senhor Roberto da rua talvez seja um deles, mas não pode. Vê mal e caminha com dificuldade. Vende a dúzia de castanhas por dois euros e meio. Tem o rosto farrusco do carvão. O que ganha mal lhe paga as contas. Mas oferta sempre um cartucho de castanhas ao mendigo, que lhe sorri e as recebe como se fossem uma dádiva divina. Partilham, ao lado da fonte, a miséria dos dias.

Os turistas passam. Atiram sobre o ombro direito uma moeda. Desejam ser uma pessoa sem sonhos, como os senhores doutores de fato executivo, ignoram o pedinte e não compram castanhas para não estragar a dieta.

Anoitece na minha cidade e a fonte ilumina-se nos rostos que enegrecem. Há silêncio e moedas na fonte. Uma mão estendida aos céus e um carrinho de castanhas que se vai.

O Inverno é frio na minha cidade. As pessoas são mais.

E as moedas são sonhos plantados na fonte, alimentando sonhos que morrem, ao lado de gente condenada a morrer sem sonhos.





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