terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Caído no chão




Se me encontrares algum sonho caído no chão, por favor apanha-o e deita-o fora. Não quero deixar o solo imundo por onde passo, com esses cacos de mim. Caem-me inadvertidamente dos bolsos. Assim, sem querer. Ainda pensam que são sementes e que, se caírem na terra, talvez possam crescer e dar frutos. Coitados. Ignora-lhes a loucura. Se me encontrares algum sonho caído no chão, por favor apanha-o e deita-o fora.

Larguei os sonhos aos teus pés. Nesse tempo. No tempo em que também eu – louca – pensei que eles pudessem ser semente. Descobri que eram vidro. Sob a bota da tua desonestidade, vi que quebravam. Apanhei-os de corrida. Movimento tão rápido e intuitivo que cortei neles as mãos. E neles quis cortar os pulsos, mas não consegui.

Do sangue das feridas cultivou-se algo de pútrido. Talvez não uma infeção mas uma desilusão que crescia na mesma medida. E fui metendo nos bolsos os cacos. Pensando. Talvez um dia desses um passo atrás. Nesse passo, como por magia, talvez se reunissem as peças do sonho e ele respirasse. Talvez fosse semente outra vez.

Tu és inquieto. Não sabes, como nunca soubeste, dar um passo atrás. Quando recuaste não foi um passo. Foi uma milha. Porque não me querias perto. Nem a mim nem aos meus sonhos quebrados, que pendiam nos bolsos.

Limpei os olhos às mãos e as mãos às calças. Tentei ensinar os meus pés a andar outra vez. Dormentes e sem destino, eles lá obedeceram ao som tremeluzente da minha voz rouca de mágoas e doente de frios. Tropeçando aqui e ali nas memórias de pedra. Escorregando aqui e ali na lama da saudade.

Da cabeça aos pés eu fiz-me e construí-me na falta de noção. Afirmei que a nudez era sonho. Que a sujidade era sonho. Que o ardor dos olhos era sonho. Porque todos eles eram poesia. E sonho é esse. Não é?

Quedando-se dos meus bolsos, os cacos insistiam que não. Irritavam-se da minha presença, que tudo aceitava, de forma mais ou menos despreocupada e ausente. Nem os sonhos quebrados queriam a companhia da mágoa. Ainda que ela fosse poética e repleta de arcaicos arrebiques de semântica.

Então, olha, inadvertidamente e quase sem dar conta, os passos foram libertando os cacos do meu bolso. E é por isso que te peço que, se me encontrares algum sonho caído no chão, por favor o apanhes e o deites fora.

Acontece que o sonho não era a poesia. Era o amor.

Acontece que o sonho não era amar. Era amar-te.

Acontece que o sonho não serve para nada.

Por isso, não leves a mal. Não largo por aí esses cacos de propósito, nem para te recordar do tempo em que sonhar era a unidade cristalina de um nós. Eles caem-me inadvertidamente dos bolsos, enquanto me convenço de que está tudo bem. Não quero sujar o chão que tu pisas. Por favor, se me encontrares algum sonho caído no chão, apanha-o e deita-o fora.






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