terça-feira, 17 de março de 2020

Carta de despedida Ônough


     É hora de dizer-te adeus. Mas adeus não é palavra que se diga a quem nos levou, sem esforço nem reclamação, aonde quer que se quisesse ir. É hora de dizer-te adeus. Mas vacilo.

     Ainda me lembro. A primeira troca de olhares. De faróis. Os meus presos à piada entediada da espera por um teu igual, com a minha avó no carro, a derreter num dia de Verão. E os teus, acesos, dizendo-me. Vá, leva-me daqui. Não vou dar-te problemas. Isso foi o primeiro problema que me deste. Mas não faz mal.

     Assististe, de forma silenciosa, a muitas discussões de uma relação que não podias sanar. E, para compensá-lo, deixavas-te ser, tantas vezes, o cavalo branco que eu mesma montava para fugir. E, nessas noites em que me desabriguei, amando estrelas como se fossem gente e desejando a capacidade de vê-las além das lágrimas, foste o banco quente onde pude deixar que a noite virasse tardia e o sonho se pusesse, aos pouquinhos, para que a escuridão perpétua não me fosse estranha.

     Não era que te importasses de fazer essas viagens comigo e mais alguém. Mas, aos poucos, foste compreendendo que, um dia, serias só tu e eu. E quiseste sempre que eu me habituasse a ti.

     De tão presente estares, acabaste por ter um nome. Um nome dado, de impulso, na memória do teu antecessor caótico, quando ameaçaste dar o primeiro problema. Lembro-me da minha voz. Oh No! E do rugido do motor a rir, como se tivesse sido uma partida. E de eu dizer. Agora tens nome. Tinhas. Ônough.

     Claro, um dia, não foi só uma partida. Também puseste o pé em falso. Acontece! Colapsámos os dois. Foi um embate brusco, contra a parede de cimento que é a vida. E, à medida que as mazelas parcas me saravam, diziam-te que coxearias para sempre e que devia deixar-te. Tu olhaste para mim. Olho com farol. Não! Eu não ia abandonar-te. Descansa. Pedi. E anuíste.

     Dos problemas que disseram que me ias dar, nunca me deste nenhum. Tinhas sempre espaço para mim, os meus problemas, as minhas compras de supermercado e basicamente o conteúdo de três casas de família. Eras um pequeno gigante, a mostrar o peito para contrariar o destino que te tinham dado. Fazias, num dia, centenas de quilómetros por mim, sem queixume e sem exigires mais do que um mínimo de atenção.

     Fizeste, comigo, mil e um piqueniques em andamento. Sem te importares que parecessem guerras de comida onde, inevitavelmente, acabavas em pior estado do que eu. E, de alguma maneira, insistindo em desligar o rádio, obrigavas-me a abstrair do som da mastigação com pensamentos que viravam textos e poemas e canções.

     Vimos, juntos, muitos pores-do-sol. Gostavas mais dos que víamos parados junto ao mar. Quando me encostava a ti e fingia que não me sentia só.

     Tivemos piadas privadas. Algumas das quais se marcaram no teu semblante. E histórias sobre a imbecilidade alheia somaram-se no teu para-brisas, enquanto vagabundeávamos na estrada mais movimentada do país.

     Detestavas chuva. Totalmente. Mas, das reclamações, feitas em três pontos de exclamação horizontais, não fazias mais do que ameaça. Antes de repetires. Vá, leva-me daqui. Não vou dar-te problemas.

     Ouvi, com desagrado, o dia em que me disseste outra coisa. Algo que não era adeus. Afinal, adeus não é palavra que se diga a quem nos levou, sem esforço nem reclamação, aonde quer que se quisesse ir. Disseste algo que enunciava que, brevemente, a soma dos teus esforços te tornaria o problema que não querias dar-me.

     Notei-te faróis tristes, enquanto escolhia as próximas mãos que te abraçariam e escolhia o próximo companheiro de viagem. E tive saudades tuas, antes mesmo de ter motivos para sentir essa saudade.

     É hora de dizer-te adeus. Mas adeus não é palavra que se diga a quem nos levou, sem esforço nem reclamação, aonde quer que se quisesse ir. A um amigo. A um companheiro de viagem. De galhofa. De aventura. A quem esteve lá, nos momentos bons e maus. Cumprindo a promessa. Reforçando-a.

     É hora de dizer-te adeus. Mas vacilo. Em vez disso, digo obrigada.




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