terça-feira, 3 de agosto de 2021

A filha do retornado

 


As imagens mostram. A História conta. Vemos. Lemos. Sabemos. Voltaram. Eles. Os retornados.

 

Nas imagens, há rostos. Na História, memórias. Homens e mulheres e crianças. Mãos, quase sempre vazias. Rostos, quase sempre saudosos. Não eram as origens mas a saudade que os faziam ser. Portugueses. Como tu e eu. Como tu. Eu, em parte. Porque eu sou. Eu sou eles. Eu sou parte deles. Desses que voltaram. Eles. Os retornados.

 

O meu pai – retornado – não retornava. Para que se retorne é preciso que se tenha estado. Nascera na colónia. Crescera na colónia. Lutara na colónia. A colónia não era colónia. A colónia já não era colónia. Então, retornara. Retornara ao lugar onde nunca estivera. É menos poético do que a ideia de voltar para o lugar de onde nunca se partiu – como lhe fez a mãe, por exemplo – mas muito mais realista, se pensarmos no eufemismo de voltar, puxado nas grilhetas da obrigação encenada e forjada nos abismos.

 

Imaginar-lhe o regresso. Dele. Deles. Dos retornados. Faz-me pensar nos rostos. Masculinos, femininos, infantis. Faz-me pensar que retornar é uma conjugação sempre feita no masculino. Já alguém ouviu falar de retornadas?

 

Fico a pensar se as mulheres não voltaram. E imagino facilmente que não. Retorno é coisa de homem, nos sentidos mais latos e estereotipados. Retorno é coisa de quem foi. As mulheres que foram, ficaram sempre. As que lá nasceram, mesmo voltando, lá permanecem.

 

Do eternizar da condição feminina, presa nos mastros do impensável sempre, fala-se de instabilidade. Mas mulher é raiz. E, mesmo que de pernas cortadas pelos livros do passado, toda a mulher permaneceu sempre no seu lugar, numa estabilidade de árvore na floresta mutável.

 

Mulher dá flor, quando é para dar flor. Fruto quando é para fruto. Folha quando é para dar folha. Sombra, quando é para dar sombra. Aqui. Ali. Além. Estação após estação. Sempre. Mas a raiz está no berço. E nunca vai. E nunca retorna. E, por isso, o retorno é-lhe impossível.

 

A filha do retornado também teve mãe. Mãe que não foi e, por isso, não retornou. E que, se tivesse ido, não teria ido realmente. E que, se tivesse nascido lá, ainda lá estaria, mesmo estando aqui.

 

Cada filho é a terra da qual uma mulher não sai. Cada filho é a colónia onde uma mãe nasce. Talvez por isso se chame de colo ao espaço que permeia o coração e a vulva.

 

As imagens mostram. A História conta. Vemos. Lemos. Sabemos. Voltaram. Eles. Os retornados. Não importa que os rostos sejam de mulher. Retornados. É uma palavra que não se escreve no feminino.

 

Reduzo ao mínimo a ideia e bebo dela. Eu, a filha do retornado.

 

 

Não se escreve no feminino. Não poderia escrever-se no feminino. Nunca uma mulher partiu, para que pudesse retornar.


Marina Ferraz






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1 comentário:

  1. Pior que na vida retornar é na vida vida entornar! figasAbraço

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