terça-feira, 17 de agosto de 2021

A Fonte da Juventude

 


Rejubilemos. Creio que chegámos. Vem. Bebe desta água. Compreende. Tu e eu. Ela. Ele. Ou eles. Ou todos nós. Ninguém será velho. Jamais.

 

 

A busca pelo Santo Graal, pela Fonte da Juventude, pelos Rios Olimpianos e pela Pedra Filosofal preenche os canais da caixinha mágica. Servem-me um sumo de laranja. Vem acompanhado de um gráfico explicativo sobre os mais recentes casos e as mais recentes mortes no país. Vertem percentagens à toa. Acompanhadas de rodapés sensacionalistas. De promessas surreais. De premissas. O mundo está a acabar. Não é o que escrevem. Mas é o que impregnam na mensagem. E é o que vem agarrado à laranja algarvia do meu sumo, servido com desinfetante líquido, não seja este copo de vidro repleto de vitaminas realmente um irmão disfarçado do manual de Aristóteles que causava tão penosa morte aos monges de Eco.

 

O gráfico dá lugar ao lip sync de um comentador qualquer, enquanto a rádio toca hits dos anos 90. As legendas continuam. Promessas de coesão na imunidade. Coesão. Mas o grupo não responde à coesão. Responde à coerção. Seja ela feita com bolas de Berlim, festas de open bar em centros de inoculação ou proibições que minam todo o trabalho ancestralmente levado a cabo, com cravos e balas. Talvez com cravos a mais e balas a menos. As flores murcham. Lembro-me sempre disto. As flores murcham.

 

Garantias impossíveis são dadas por entidades oficiais. Ninguém sabe, em concreto, quanto das palavras são ficção científica e quanto delas são verdade. Mas impera repeti-las. Sabemos todos que a verdade não vale menos que a mentira coletiva, contando que o dogma se perpetue.

 

Todas as guerras são dogma perpetuado. Verdade contra verdade. Nunca um soldado defendeu outra coisa além da verdade da sua fação. Dois goles e a narrativa salta para Cabul. O estômago revolve-me na narrativa do futuro que já foi todo ontem. Mas ninguém aprendeu nada. E embatem novas verdades e velhas, com gente que se amontoa nas plataformas da fuga, agarrando rodas de avião como se o próprio Alá comandasse os voos. Dizem que morreram sete pessoas hoje. Esmagadas pela realidade. Algures, na segurança do lar, um presidente assume a responsabilidade essencial e nega a responsabilidade efetiva. Lamenta. Pena que a sua voz se perca nos gritos de quem perde a vida. Pena que a sua voz se perca nos gritos de quem sabe que vai perder a vida. Pena que a sua voz se perca.

 

Apercebo-me de que me dói o estômago. Exatamente quando entra o anúncio do antiácido que patrocina o telejornal. E apercebo-me de que estou a olhar, faz tempo, para a caixinha abominável das atrocidades. Entra o anúncio da cerveja com os heróis do futebol nacional. E apercebo-me de que está a ficar tarde e tenho um pé dormente. Volta a pivô, com a makeup exagerada que tenta esconder a postura masculinizada, contando o número de portugueses no aeroporto afegão. As imagens mostram um mar de gente, tentando escapar ao inevitável. Todos sabemos que este será, em breve, um mar de cadáveres. Mas a legenda impera. Portugueses. Preocupamo-nos. Ainda existe uma mão cheia de almas lusas na confusão desse aeroporto distante. Choramos essas. Todas as outras ficam mais longe.

 

Neste momento, as imagens da caixinha mágica obrigam-me a largar o copo sobre a mesa, ainda meio cheio. Ou já meio vazio. Nem sei. Neste gesto, ouço o burburinho de alguém que, de face escondida, critica que, mesmo de copo na mão, eu não tape também a boca e o nariz. Percebo que não tenho, já, sequer o direito de respirar no meu metro-e-pouco-mais-de-meio de gente. Abandono o espaço que não tenho. Para chegar ao carro e tapar, em vez disso, os olhos. Com as mãos. Para que as lágrimas salgadas me criem novas camadas de muro sobre o rosto envelhecido pelas décadas.

 

É o tempo da morte. Concluo. Quem não morrer da doença, morrerá da coerção, da cura, da guerra ou de desgosto.

 

Entristece-me. Mas creio que chegámos. Vem. Bebe desta mágoa. Compreende. Tu e eu. Ela. Ele. Ou eles. Ou todos nós. Ninguém será velho. Jamais.

 

Talvez morrer cedo seja viver para sempre.

Encontrámos a Fonte da Juventude.

 

Vivemos o tempo da morte.

Ninguém será velho.


Jamais.


Marina Ferraz





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