terça-feira, 24 de agosto de 2021

Meu Anjo

 



Para o Paulo Maria


“Meu anjo”, dizias. E eu sei que quase ninguém percebia as tuas palavras. Mas eu sabia. Tinha aprendido. Também se aprende a ouvir. E a perceber. Por isso, quando dizias. “Meu anjo”. Eu sabia que era eu.

 

O anjo era eu. Eu, logo eu. O anjo. Mas, em vez de te responder na mesma letra do que sempre digo a todos que assim me tratam, vociferando impropérios entre as muitas frases que podem compor um “detesto que me chamem anjo”, eu derretia-me com o teu semblante quando eu entrava pela porta escancarada e tu quase saltavas da cadeira, em entusiasmo por me ver.

 

Conheci-te permanentemente com um copo de cerveja à frente. Sei quantas vezes, na mistura dessa poção mágica que te inebriava os sentidos, a minha irmã colocava Martini. Conheci-te permanentemente rodeado de pessoas que sorriam, que riam, que se animavam. Trazias festa contigo. Eras a festa que trazias. Como se a tua presença, de sorriso aberto e alma pura, fosse o foco de luz mais brilhante da sala.

 

Era curioso que fosses luz, porque também eras trevas. Talvez esse teu lado fosse reservado para alguns. Talvez só para os amigos mais próximos, que te sabiam lobo negro. Talvez só para os que liam a tua poesia, sempre gótica e sombria. Sabe-se muito sobre um homem pela sua poesia. E a tua, meu amigo, era uma floresta muito densa, onde vagueavam espetros e se derramava o sangue de todas as mágoas. As tuas. As dos outros. Todas as mágoas que enterravas, no ecrã, com as pontas dos dedos dos pés. Como se quisesses arrumar a dor, aprisioná-la, garantir que ela não te roubava o sorriso do rosto.

 

A vida tinha-te amarrado à cadeira. Literalmente. Mas eras livre. Uma alma livre e sedenta de vida. Um bon-vivant e um bom amigo. Em todos os aspetos, a deficiência em ti era pormenor. E era-o porque os teus pormaiores saltavam à vista. Até que, sedenta de te apagar a luz, essa vida carniceira (tão pior do que a morte e ninguém a teme!) te quis amarrar a uma cama.

 

Recusaste. Imagino, embora não possa ver, esse lobo negro em ti a libertar-se da jaula em que queriam enclausurá-lo. E apetece-me dizer-te. Leva-me as asas e voa.

 

Disseram-me que não voltas.

 

Nunca mais vou ouvir alguém, num entusiasmo louco, dizer “meu anjo”, sem que eu me importe. E nunca mais vou receber o riso animado, quase excitado, nascer do fundo da sala, na leitura dos teus poemas, que o público aplaudia com tanta vivacidade.

 

Disseram-me.

 

Nunca mais me vou rir das histórias dos copos a mais, olhar esse sorriso sem margens, nem receber essa tua luz ao entrar na noite dos espetros.

 

Dizem que a cadeira ficou vazia.

 

Não preciso de me esforçar muito. Consigo imaginar. A cadeira vazia. Mas, digam o que disserem, para mim foi o teu corpo que sarou. E tu pousaste os pés no chão. Levantaste-te. E estás, algures, a beber cerveja e a escrever poesia.

 

À espera que eu chegue. Para sorrires e me cumprimentares dessa maneira que só tu podias.

 

“Meu anjo”


Marina Ferraz





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