terça-feira, 31 de agosto de 2021

Miami Vice

 

Fotografia: Engin_Akyurt


Duas coisas eu fiz no México: Bebi Miami Vice e olhei para as pessoas.

 

Claro: também apanhei um escaldão. E nadei na piscina. E visitei Chichén Itzá. Enfardei o buffet do hotel. Tomei pequenos-almoços britânicos. Adotei um tigre amarelo feito em balão. Fiz tiro ao alvo. Aeróbica. Uma espécie falhada de arco e flecha. Enfim. Coisas. Mas as duas principais foram estas: Bebi Miami Vice e olhei para as pessoas.

 

O meu Miami Vice e as pessoas do meu hotel eram o mesmo tipo de fraude. O cocktail porque a pulseira verde alertava o bartender de que o meu tudo-incluído era na versão para menores, passando a ser um tudo-incluído-menos-álcool-e-drogas. As pessoas do hotel porque, estando num Resort de 5 estrelas “mais” (coisa que eu nem sabia que existia até lá chegar), pareciam, de alguma forma, muito pobres.

 

Saboreando a bebida granizada, no bar que ficava na piscina – literalmente dentro da piscina – eu ia assistindo a discussões, desentendimentos, ataques, lágrimas no canto do olho, que resultavam em mareados pedidos de bebidas que, certamente, ao contrário da minha, não vão estar no céu à espera dos homem-bomba.

 

Também me apercebi de que a maioria das crianças estava aborrecida. A maioria dos adolescentes estava chateada. A maioria dos adultos tinha mais rotações de íris por dia do que a Terra conta, sobre si mesma, num ano.

 

A bebida era fria e as pessoas também. O riso, raro e de conveniência, vinha por vezes. Poucas vezes casual. Poucas vezes verdadeiro. Enchiam-se copos. Incluindo o meu.

 

No hotel, pela sua extensão, andávamos num comboiozinho turístico. Havia palmeiras e flamingos. Sei lá eu quantas piscinas. Sei lá eu quantos restaurantes. Sei lá eu quantos SPA’s e ginásios. Sei lá eu quantos caminhos, instrutores, funcionários, cozinheiros especializados, massagistas e pessoas-que-estão-lá-para-fazer-cumprimentos-efusivos. Não havia razão para sair da pequena cidade que era o hotel, senão para justificar que não se tinha feito um voo interminável só para ouvir o mesmo idioma que se fala no país vizinho.

 

Saí do hotel. Mesma pulseirinha verde. Fora do hotel, não havia Miami Vice, nem virgem, nem de outro tipo... mas olhei para as pessoas. As pessoas fora do hotel porque, estando fora de um Resort de 5 estrelas “mais” (coisa que eu nem sabia que existia até lá chegar) eram pobres. Muito pobres. Serviriam para ilustrar a palavra “pobreza” no dicionário. Mas, olhando para elas, pareciam, nos meus olhos menores, de alguma forma, muito ricas. Riam alto e com vontade. Dançavam. Alegravam-se. Saboreavam o pouco que tinham com prazer. Davam os ossos aos cães. E partilhavam-se. E queriam partilhar, connosco, essa euforia de copo na mão e música na rádio.

 

Observadora passiva de dois mundos contrastantes, não sei se sabia, ainda, perceber. O lado taciturno da riqueza de salto alto. O lado feliz da pobreza de pé no chão. Mas sei que pedi mais um Miami Vice, quando voltei e sentia o peito pesado.

 

O peso nunca aligeirou. Mesmo com o passar dos anos.

 

Às vezes, passo na rua e vejo-a. A riqueza. A desdenhar.

 

Às vezes, passo na rua e vejo-a. A pobreza. A rir.

 

Esse binómio incompreensível. Entre quem tem tudo e não é feliz, nem tenta ser. E quem não tem nada mas tenta ser feliz com o quase-nada que tem. Será que consegue? Tenho muitas perguntas sem resposta. Essas sobre a riqueza e a pobreza e a desigualdade. Sobre as realidades que se ignoram, num contrato tácito de não-observação.

 

Sobro eu. Observo. E, às vezes, penso que foi isso que vim fazer ao mundo: Beber Miami Vice e olhar para as pessoas.

 

O peito pesa. Agora, o peito já é maior de idade.

 

Peço um Miami Vice. Mas, se o mundo é isto... e ninguém entende... e ninguém se importa... por favor, desta vez, alguém carregue no rum!


Marina Ferraz





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