terça-feira, 9 de maio de 2023

Criança interior

 


 Fotografia de Analua Zoé

Afaguei-a nos braços. E sussurrei. Obrigada. Ela estava cansada de tantas fugas. Tinha passado por entre as gotas de chuva ácida do mundo dos grandes. Ainda bem que era pequena. Quis perguntar-lhe como era sobreviver apesar de... mas ela já tinha adormecido. Era a primeira vez que se sentia segura.

 

 

O mundo dos grandes era cruel. Foi sempre cruel. Os grandes queriam, descobrira cedo, que ela fosse grande também. Mentiam muito, era verdade, mas nunca sobre isso. Nisso, desde o começo, tinham sido honestos. Começavam muitas frases com “quando fores grande...”. Repreendiam-na porque “não era coisa de menina crescida”. Até os estranhos lhe perguntavam: “o que queres ser quando fores grande?”. O problema. O grande problema. O problema grande era... Ela não queria. Ser grande.

 

Observando, em silêncio, o mundo pequenino das gentes grandes, ela ia descobrindo uma grande verdade: tudo era reduzido a nadas. Era um nada tão vazio que era plural. Nadas. De linhas retas nos lábios, os grandes iam alisando as curvas dos sorrisos dos pequenos, insistindo que eles deviam seguir-lhes os passos. Parecia ser algo triste e aborrecido.

 

Ignorando-os, foi voando na imaginação de outros mundos. Seus. Como não eram concordantes com a filosofia dos grandes, disseram-lhe sempre o mesmo. Que esses mundos não existiam. Esses mundos eram uma espécie de fé só sua. E, embora os grandes estivessem dispostos a crer num Deus que nunca tinham visto, negavam todos os outros Deuses com o argumento de que não os tinham visto. Os mundos, decidiu, eram esses outros Deuses que os grandes se recusavam a aceitar. Deviam ter medo que o mundo deles se ofendesse com os outros mundos... mas não entendia bem qual o castigo premente dessa crença, se o mundo em que os grandes viviam parecia ser já, em si, Inferno.

 

Troçaram-na. Castigaram-na. Vestiram-lhe o uniforme e mandaram-na para o abismo. Deram vergastadas nas mãos que tentavam agarrar os sonhos. Desligaram as luzes dos túneis que ela ia encontrando. Apontaram dedos tiranos na direção de todos os caminhos certos, palmilhados por gente que se esquecera de vestir a alma de manhã.

 

E ela? Ela pegou naquela centelha de pó de fada. Porque acreditava em fadas. Pegou na chave que dá entrada para o Reino dos Sonhos. Disse ao corpo: fica aqui e finge ser como eles, da mesma forma que eles fingem estar bem. Levou a alma e o coração a passear. Fora da carne. Plantou-os à beira-rio, mesmo à porta da Floresta Negra. Falou brevemente com o Vento do Norte e disse: protege-me. Ele chamou-lhe Amanda. Não era um nome. Significava só: aquela que é amada. E ela prometeu, ali, que nunca gastaria em vão a palavra Amor.

 

O corpo foi correndo o tempo do tempo. Até ganhar rugas de expressão e cabelos brancos. Inerte e ausente, visitava por vezes esse eu que era amado. Lá. Onde se refugiara da guerra diária que é querer ser pequena.

 

 

 

Duas crianças abraçaram-me. Era a Laura e o Tomás. Disse-lhes um poema. E abraçaram-me. Quando me largaram, tinha-a nos meus braços. Olhei-a. Reconheci-a. Afaguei-a nos braços. E sussurrei. Obrigada. Ela estava cansada de tantas fugas. Tinha passado por entre as gotas de chuva ácida do mundo dos grandes. Ainda bem que era pequena. Quis perguntar-lhe como era sobreviver apesar de... mas ela já tinha adormecido. Era a primeira vez que se sentia segura.

 

 

Olhei-a. Integrei-a. Fui-a. E hoje sou. Sou o corpo grande com a alma pequena. Tão pequena, tão pequena... que cabem nela muitos tudos. Um tudo tão pleno que é plural. Tudos. Se um dia for grande, acho que quero ser Vento do Norte. Para dizer à Laura e ao Tomás e a todas as Lauras e Tomáses que são Amandas. Que serão amadas apesar de... Que outros Deuses existem. Que outros mundos existem. Que fadas existem. Que a magia existe. Assim como tudo o que os grandes não veem, porque os mandaram ser grandes... e eles se tornaram tão pouco... que são só isso.


Marina Ferraz




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