terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Milagre

 

Imagem gerada por I.A.

Parei. É o que acontece quando não temos uma televisão. Paramos. Assim que existe uma dessas caixinhas mágicas ligadas. Imagens em movimento cativam os olhos desabituados, que não usam o ecrã apenas como fuga e companhia permanente. Dava o telejornal. E eu sentei-me. E eu levantei-me. E eu servi-me de um copo de amêndoa amarga. E eu voltei. E eu digo-vos. Não dá para aguentar isto sóbria!

 

Um carro a parar para uma senhora idosa atravessar a estrada com calma. Um cantor que tira a tarde para ir ao centro de dia alegrar os idosos. Um pai que acende a luz de presença ao filho em vez de o criticar por ter medo do escuro. A senhora que leva a refeição aos sem-abrigo todas as semanas. Os voluntários que se sentam por horas, a ouvir as histórias de utentes paliativos. A menina que adota o animal abandonado. O professor que não cobra pelas horas de apoio extra. O amigo que manda mensagem só para saber se estás bem. Os trabalhadores apressados que deixam um “café pendente”. Os clientes que deixam uma avaliação positiva e um comentário bonito de agradecimento, ou que agraciam generosamente os funcionários com gorjetas. O estranho que dá um abraço de empatia. O idoso que planta uma árvore para que o neto, ainda por nascer, se lembre dele. Os amantes da Natureza, que tiram dias para limparem as praias e as florestas. As crianças que beijam as bochechas das avós. O senhor que corre atrás de alguém para devolver a carteira que deixou cair. O colega que defende a vítima de bullying, sem se importar com as consequências.

 

Há muitos milagres no século XXI. O telejornal não fala sobre eles. Diz-nos que aumentou novamente o número de gente sem teto. Fala-nos da guerra na Ucrânia. Destaca os desajustados preços da habitação. Diz quantas pessoas morreram por atraso na resposta do SNS. Divulga as 30 greves e manifestações que houve na semana. Mostra partes incoerentes do discurso de autarcas, deputados e chefes de estado. Atira-nos à cara os votos sobre o novo orçamento. Revela os lucros obscenos das grandes empresas. Segue essa informação com dados sobre a inflação gigante e o pequeno aumento dos salários. E, depois, numa nota de esperança, fala do Natal... ah, esqueçam, foi para dizer que o bacalhau já ultrapassou os 20 euros por quilo e pode chegar aos 40, já em 2025.

 

Observo tudo isto com um copo cada vez mais vazio. E, por tristemente o achar vazio demais, encho-o de novo. Não dá para aguentar isto sóbria!

 

A pouco e pouco, vou desligando do ecrã e pensando nos milagres. Dizendo a mim mesma que ainda existem pessoas boas. Pedindo aos meus avós que, lá do outro plano, me ajudem a ser uma delas.

 

De repente, ensinamentos de outro tempo que mais parece outra vida, levam-me às milagrosas histórias de uma rainha boa. E imagino-a hoje, caminhando calmamente, com as vozes agrestes perguntando: o que levas aí no regaço?

 

E imagino-a a dizer: São cravos, senhor.

E imagino as vozes: Cravos em Dezembro?

E imagino que cravos vermelhos lhe caem do manto.

 

Talvez toda a bondade seja um cravo. Talvez toda a bondade seja um gesto de rebeldia. Talvez haja esperança. Ou talvez eu devesse beber menos...


Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Vinte e quatro

 

Fotografia de Ana Leonor Jesus

 A minha sobrinha encontrou uma gatinha. Na verdade, uma gatinha encontrou a minha sobrinha. Aperceberam-se uma da outra. Na sua pequenez de gato de rua. Na sua pequenez de menina que não chegou ao metro e sessenta. Entreolharam-se.

 

Quando se cruzaram, a minha sobrinha estava a alimentar os gatos de rua. A gata percebeu o gesto compassivo e apaixonou-se por ela. Escolheu-a. E, mesmo sem autorização para abrigar animais dentro das paredes da casa, a minha sobrinha agarrou nela, escondeu-a dentro do casaco, e tirou-a do frio que se sentia na rua, sem hesitação.

 

Conta a minha sobrinha que não foi fácil. Diz que a gatinha estava assustada... sem nunca referir que ela própria o estava, já que o apego é rápido e a separação magoa. Mas quis a vida que pessoa e gato encontrassem aceitação. Que as paredes da casa se tornassem abrigo tolerado. Que se começasse a escrever uma história de gato – gata – com nome. Chanel. Uma história entre uma gata e uma humana que estabeleciam o vínculo: a partir de agora, tu és minha e eu sou tua.

 

Na casa da minha sobrinha são caminhas e brinquedos, aquecedor, comida de gato, água fresca, riso, carinho e brincadeiras – sendo a principal a de destruir a árvore de Natal. Entendam. Isto não é uma conjetura! Sei isto! Eu e a família inteira! Sabemos disto porque a adoção de uma gatinha transformou o grupo de whatsapp da família numa espécie de guerra interna, onde o bombardeamento é de fotos felinas.

 

A minha sobrinha arranjou uma gatinha. Por entre os mil e quinhentos vídeos do grupo, todos dizem é linda e fofinha. É. Mas eu confesso que me senti incapaz de responder. Porque também acho que é linda. Linda, diria eu, além dos olhos claros e dos cabelos louros. Linda de compaixão. Linda de carinho. Linda de amor. Com o tipo de beleza que só tem quem cuida. Então, ao vê-la cuidar assim daquela gatinha de rua – agora de casa – eu não fui capaz de dizer nada.

 

Mas digo hoje. E digo hoje porque, há precisamente vinte e quatro anos, houve uma noite em que chorou uma bebé recém-nascida. Porque ao olhá-la eu agarrei nela e a escondi dentro do coração, carregando-a para a vida, sem hesitação.

 

Do laço de amor criado, nesse primeiro dia, trago uma memória que também é riso e felicidade. Uma história entre uma criança e uma bebé que estabeleciam o vínculo: a partir de agora, tu és minha e eu sou tua.

 

Olhando para os vídeos de uma gata, eu vejo o ser humano, hoje mulher, que alimenta os animais de rua e os acolhe na própria vida. E, quando leio “é tão linda”, eu concordo...

 

Só que não estou a falar da gata!


 Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Nome de rua

 


Provavelmente nunca darei nome a uma rua. Mas nunca pensei ter medo de que viesse a surgir uma rua em minha homenagem. Até hoje...


Em Mem Martins existe uma rua. Com o nome de uma escritora. Consagrada. Amada. A Menina do Mar da nossa praia. A Fada Oriana do nosso imaginário. O Cavaleiro da Dinamarca da nossa peregrinação. O Rapaz de Bronze dos jardins da nossa mente. “Porque os outros se mascaram, mas tu não...”. Falo, claro, de Sophia de Mello Breyner.  

 

Provavelmente, se abrirem o vosso GPS e digitarem o nome, buscando a localização da rua, não vão encontrá-la... mas ela está lá! Provavelmente, se abrirem o Google Maps e a procurarem, não vão encontrá-la... mas ela está  lá! E continua a estar, numa homenagem que foi perdendo uma letra aqui, um conector ali... exibindo a placa onde se lê Sofia de Melo Breyner.

 

São dois erros, num nome só... um “ph” que vira “f”, um “l” que se perdeu no caminho, um nome que não é o mesmo, embora o seja... dois erros em três palavras (se descartarmos a preposição) e, mesmo se não a descartarmos, metade do nome está errado!

 

Imaginei, por momentos, que a decisão do nome das ruas fosse muito informal, e que por entre copos de cerveja e larachas com os amigos num tasco qualquer, o responsável tenha olhado e pensado que o absinto o iluminara com uma Oriana verde, anotando o nome num guardanapo e registando-o assim.

 

Bem.... eu não sabia, confesso, onde se registavam os nomes das ruas. Fez-me sentido, perante a situação, que fosse no contexto mais ébrio e informal. Mas fui pesquisar. Parece que, afinal, a decisão é ponderada pela câmara municipal de cada concelho que, muitas vezes em parceria com as juntas de freguesia, delibera o nome em reunião oficial, consultando e buscando o parecer de entidades históricas e culturais antes de proceder aos registos oficiais de toponímia e à respetiva comunicação em cartórios, havendo depois a afixação do nome e a sua publicação em edital. Nem que apenas uma pessoa fosse parte de cada uma das fases do processo, estaríamos, portanto, a falar de cinco pessoas que não viram nenhum dos erros num dos nomes mais emblemáticos da nossa literatura!

 

Provavelmente nunca uma rua terá o meu nome. Mas, até hoje, se me perguntassem, não me importaria que a vida desse uma volta que gerasse essa homenagem. Seria giro ter uma rua, num tempo em que para se ter casa já é preciso, quase, entrar pelos mundos do meretrício... Só que, subitamente, todos os meus traumas regressaram. Se eu não consigo que nem os profissionais do telemarketing me liguem sem me chamar o nome errado... imagine-se!

 

Então, antes que venha o dia de haver uma rua “Mariana” Ferraz, e sendo que sei o país em que vivo... por favor, peço encarecidamente, não deem o meu nome a uma rua!


Marina Ferraz




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