Parei. É o que acontece quando não temos uma televisão. Paramos. Assim que existe uma dessas caixinhas mágicas ligadas. Imagens em movimento cativam os olhos desabituados, que não usam o ecrã apenas como fuga e companhia permanente. Dava o telejornal. E eu sentei-me. E eu levantei-me. E eu servi-me de um copo de amêndoa amarga. E eu voltei. E eu digo-vos. Não dá para aguentar isto sóbria!
Um carro a parar para uma senhora idosa atravessar a estrada com calma. Um cantor que tira a tarde para ir ao centro de dia alegrar os idosos. Um pai que acende a luz de presença ao filho em vez de o criticar por ter medo do escuro. A senhora que leva a refeição aos sem-abrigo todas as semanas. Os voluntários que se sentam por horas, a ouvir as histórias de utentes paliativos. A menina que adota o animal abandonado. O professor que não cobra pelas horas de apoio extra. O amigo que manda mensagem só para saber se estás bem. Os trabalhadores apressados que deixam um “café pendente”. Os clientes que deixam uma avaliação positiva e um comentário bonito de agradecimento, ou que agraciam generosamente os funcionários com gorjetas. O estranho que dá um abraço de empatia. O idoso que planta uma árvore para que o neto, ainda por nascer, se lembre dele. Os amantes da Natureza, que tiram dias para limparem as praias e as florestas. As crianças que beijam as bochechas das avós. O senhor que corre atrás de alguém para devolver a carteira que deixou cair. O colega que defende a vítima de bullying, sem se importar com as consequências.
Há muitos milagres no século XXI. O telejornal não fala sobre eles. Diz-nos que aumentou novamente o número de gente sem teto. Fala-nos da guerra na Ucrânia. Destaca os desajustados preços da habitação. Diz quantas pessoas morreram por atraso na resposta do SNS. Divulga as 30 greves e manifestações que houve na semana. Mostra partes incoerentes do discurso de autarcas, deputados e chefes de estado. Atira-nos à cara os votos sobre o novo orçamento. Revela os lucros obscenos das grandes empresas. Segue essa informação com dados sobre a inflação gigante e o pequeno aumento dos salários. E, depois, numa nota de esperança, fala do Natal... ah, esqueçam, foi para dizer que o bacalhau já ultrapassou os 20 euros por quilo e pode chegar aos 40, já em 2025.
Observo tudo isto com um copo cada vez mais vazio. E, por tristemente o achar vazio demais, encho-o de novo. Não dá para aguentar isto sóbria!
A pouco e pouco, vou desligando do ecrã e pensando nos milagres. Dizendo a mim mesma que ainda existem pessoas boas. Pedindo aos meus avós que, lá do outro plano, me ajudem a ser uma delas.
De repente, ensinamentos de outro tempo que mais parece outra vida, levam-me às milagrosas histórias de uma rainha boa. E imagino-a hoje, caminhando calmamente, com as vozes agrestes perguntando: o que levas aí no regaço?
E imagino-a a dizer: São cravos, senhor.
E imagino as vozes: Cravos em Dezembro?
E imagino que cravos vermelhos lhe caem do manto.
Talvez toda a bondade seja um cravo. Talvez toda a bondade seja um gesto de rebeldia. Talvez haja esperança. Ou talvez eu devesse beber menos...
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