quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Adoeço



Adoece-me o rosto no cansaço. Pálido e olheirento, ele toma tonalidades amareladas, gastas, pouco sadias. E vincam-se sob os olhos tapetes inchados onde há lágrimas por verter e negrume. Adoece-me o rosto. E há nele traços incontestáveis que se chamam de sintomas. O diagnóstico faz-se nas ruas. Parece doença. Mas é cansaço.

Adoece-me o coração na mágoa. Arrítmico, descompassado, toma ritmos seus, que diferem do mundo e dos restantes corações. Bate e, uníssono com o ritmo da cidade. Uma cidade de caos. E dói no peito, enquanto bate. Um aperto, um sopro. Pausa e retorna. Adoece-me o coração. E há no seu ritmo traços incontestáveis. Sintomas. O diagnóstico faz-se à mesa, sobre as refeições, acompanhado de vinho verde. Parece doença. Mas é mágoa.

Adoece-me o corpo na angústia. Seco. Escanzelado. Constantemente à procura do que não tem, seja sal ou amor. E a intercalar entre a dor severa e a moinha constante, permanente. Essa que não quebra mas verga. Essa que não mata mas mói. Adoece-me o corpo. E, nas suas arestas há traços incontestáveis do mal que me aflige. Sintomas. O diagnóstico faz-se nas conversas de ocasião. Parece doença. Mas é angústia.

Adoece-me a alma na solidão. Incauta, imunda, recheada de promessas não cumpridas e de palavras por escrever. Tem rasgões do tamanho de rios e crateras do tamanho do Universo. Faltam-lhe bocados. Permanece rasgada, dentro de mim. E os pedaços rasgados estão amarrotados e sujos. Já não sou eu. Adoece-me a alma. E transparece, projeta-se no mundo essa matéria que a aflige e a corrói. São os sintomas. E faz-se o diagnóstico nas avenidas dos sentidos. Dizem que é doença. Mas é solidão.

Adoece-me o sonho no tempo. Triste e pardacento, vai descolorando e tomando a transparência de tudo o que não lhe coube nos desejos. Vai desaparecendo. Também ele emagrece e se deixa decompor em mil pedaços de nada. Adoece-me o sonho. Fica moribundo, a lutar já sem forças nem razões. É esse o sintoma. E, no concílio, faz-se o diagnóstico. Dizem que deve ser doença. Mas é realidade.

Adoeço. Há mil sintomas. Parece tumor a alastrar. Arrastando as suas metástases até ao mais profundo de mim. Adoeço. Parece cancro. Mas é só tristeza.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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