Ela não parece ter grandes sonhos. Acorda impaciente e segue
o dia desejando a hora de dormir. Não se olha ao espelho. Ou olha de relance,
enquanto passa as mãos pelo cabelo de forma atabalhoada e sai pela porta. No
seu rosto, quase nunca há maquilhagem. Costuma haver sorrisos. Alguns. Mas nem
todos são verdade. Alguns são. Mas esses reservam-se para alguns momentos e
algumas pessoas. E escondem mágoas. Se escondem… Escondem justamente os sonhos.
Milhões de sonhos. Aqueles que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ter muita força. Avança pelas ruas, de mãos
abertas e vazias. Gosta mais de dar do que de receber. Trata toda a gente com
uma cordialidade que se faz formal na informalidade de palavras simples. Aponta
as culpas às circunstâncias e diz que não mudaria nada. Não é exatamente
verdade, embora também não seja mentira. Ela simplesmente convenceu a sua
própria mente a acreditar. E avança. Pelas ruas. De mãos abertas e vazias.
Sorrindo. Parece ter a idade do mundo e metade da idade que tem. Tudo ao mesmo
tempo. Pesam-lhe nos ombros decisões e vontades. E medos. Ela tem muitos. Mas
quase nunca os diz. Luta contra eles. Uma luta inglória que ganha, aos poucos,
usando a força. A desmedida força. Aquela que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ter muita vontade. Em conversas que dizem
pouco mais do que nada, ela desvia exércitos de perguntas e faz o mundo
acreditar que o universo do que é comum lhe basta. A casa. O carro. A rotina.
Levar os filhos. Fazer o jantar. Envolver-se em atividades. Faz toda a gente
pensar: é o que lhe basta. E, num primeiro olhar é. Mas não. Não é! Nos pontos
aperfeiçoados dos seus bordados há a vontade de romper grilhetas. E nas
palavras de incentivo que deixa, em conselho, a quem pede, há a vontade de
mudar o mundo. Ela contenta-se com pouco. Mas quer muito, na sua vontade.
Naquela que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ser especial. Caminha pelas ruas, como
qualquer pessoa. Segue a rotina. Envolve-se nas histórias da família. Molda a
realidade das tarefas, ora com obsessão, ora com desapego. E vê televisão, deitada
no sofá, debaixo da manta. E lê livros de fazer chorar. E ri com publicações
idiotas das redes sociais. Como a maioria, camufla a dor debaixo de uma camada
densa de apatia. Finge não se importar. É tudo um bocadinho cinzento. Mas é o
mal dos monstros. Debaixo da camada cinzenta, correm sonhos e vontades, há
mares de força e entendimento. Formam-se arco-íris de sentimentos e sensações.
Debaixo do que se vê, ela vai desbravando mato, à procura do que nem todos
sabem que existe. E olha ao espelho, para dizer a si mesma que se ama – ainda
que não ame -; e olha para os filhos para dizer a si mesma que venceu; e olha
para as tarefas para dizer a si mesma que, por um dia, o cansaço não levou a
melhor. Em cada um dos seus pontos, ela faz mais do que desejar a quebra das
cordas que a amarram. Ela rompe-as. E, por maior que seja a mágoa, ela
levanta-se. Por maior que seja a dor, ela sorri. Por maior que seja a tristeza,
ela dá o melhor de si a toda a gente. E é isso que a torna especial. Especial
como ela não parece ser. Mas é!
Ela pode até não parecer especial. Até pode. Porque, no meio
desta amálgama de gente que povoa o mundo, ninguém parece. Mas, Deuses, são os
sonhos, a força e a vontade que ela não parece ter que lhe dão brilho. E é um
brilho maior do que o Sol. Um brilho que ilumina as ruas onde ela caminha, de
mãos abertas e vazias. Segurando os fios que tecem a ténue hipótese de, um dia,
o mundo se tornar um lugar melhor para viver.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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