Levo balas cravadas no peito e cravos nas mãos. Trago
canções nos lábios. Um quase nada fora de tom. Ninguém nota. E por ninguém
notar sou livre. Livre nesta vontade de mostrar apenas os cravos e esconder as
penas que, feito balas, continuam a avançar, devagarinho, na direção do meu
coração.
Não quero tê-lo. O coração. Tenho o direito de não ter
coração. E o direito de dizer que não o quero. E o direito de obrigar os outros
a ouvirem-me. Roubando-lhes a liberdade de não ouvir. Mas não importa. Sou
livre. Livre de não querer sentir. Livre de fechar os olhos à vida, que é feita
de armas, e de os abrir para a ilusão, que é feita de cravos.
Deito-me sobre a cama desfeita pelas mãos de um soldado
chamado Acaso. Ele tomou a liberdade de fazer a cama onde me deito sem me
deixar escolher os lençóis ou a colcha. Temperou-me a noite com um colchão de
espinhos e disse que era livre, livre de ter um sono tranquilo. Obrigada,
liberdade, vou dormir então. Nesses lençóis de fel, nessa colcha de agrura,
nesse colchão de espinhos. E há-de ser um sono suave. Cheio de sonhos
tranquilos e de lágrimas contidas no riso tépido.
Levo balas cravadas no peito e cravos nas mãos. Ofereço as
balas e vendo as flores. Ninguém quer o que é dado. Pagam-me os pés de flor. E
deixam cada vez mais a nu a ferida do meu peito. As pessoas olham para a
ferida. Mas não a vêem. Vêem as nódoas do avental perfurado. E é disso que
falam, à medida que levam as flores. Aceno-lhes. Tenho a liberdade de acenar. E
dizem que é sorte. Podia não ter mãos. Ou braços. Mas tenho. E aceno. Livre.
Já sem flores, fico só com as balas. E vou pelos caminhos
ladrilhados das pedras às quais não perguntaram se queriam ser pisadas. Mas
elas são livres. Livres de não terem um padrão definido na calçada. Como nós.
Pelo caminho, vejo os mundos do mundo. Os sacos carregados de quem livremente
se deixa deambular por entre montras ricas. Os potes vazios de quem livremente
dorme sob as estrelas.
Os artistas tocam. Têm talento. E alguma fome. E a liberdade
de cantar canções polémicas nos cantos das ruas, com o saco da guitarra aberta
e meia dúzia de trocos para comprar um pão algures, no fim do dia.
Limpo as mãos ao avental, tentando retirar a camada de
ironia que se amontoa nesta minha completa liberdade, que agradeço, por medo de
que julguem que me inclino para os extremos da vida. Livre, mas não tanto,
suponho eu. Só um bocadinho. Se calhar nem um bocadinho. Mas digamos que sim.
Vamos fingir que sim. Senão…
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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