quarta-feira, 5 de abril de 2017

Guia de sobrevivência



Nota: Designa-se por Monstro todo o indivíduo que, de forma voluntária ou por influência de factores biológicos, anímicos ou externos ao mesmo, seja incapaz de se adaptar e/ou integrar na norma social e serve o presente guia para determinar as normas inerentes à conduta do mesmo. A correcta utilização deste guia, bem como a aplicação prática das suas propostas comportamentais poderá ser uma mais-valia no sentido de minorar o dano provocado pela diferença intrínseca do Monstro, ajudando-o a camuflar-se no seu meio social, simplificando, desta forma, a vivência das pessoas e reduzindo o risco de isolamento e segregação do indivíduo desviante.

1. Aceitação - Primeiramente, por forma a permitir a convivência com as pessoas do mundo, o Monstro deve aceitar a sua condição inferior e, assumir, na sequência desta aceitação, uma conduta de subalternidade. O Monstro deverá, portanto, ser o primeiro a ceder, levando, muitas vezes, a maior parte do trabalho e distribuindo o crédito do mesmo pelas pessoas com as quais, em dado momento, faz parceria. Embora o trabalho do Monstro possa ser (e muitas vezes seja) de qualidade igual ou superior ao de terceiros, este não deverá esperar igual reconhecimento ou recompensa. A qualidade do trabalho apresentado deverá constituir, por si só, motivo suficiente para ânimo e incentivo, sendo raro, por parte de uma pessoa, a valorização de trabalhos realizados por aqueles que constituem a minoria. Tratando-se de um ser socialmente estranho e marginal, o Monstro não deverá, em situação alguma, enfatizar os pontos nos quais se destaca, sob o risco de destacar também, durante esse ímpeto de vaidade, a diferença manifesta que o separa dos outros e de contribuir, portanto, para a sua própria segregação.

2. Cognoscência e opinião - O Monstro reserva-se o direito de pensar o que quiser, contando que o faça em silêncio. Os seus pensamentos devem ser recatados. Especialmente quando expressam opiniões divergentes e concretas, devem ser domados, confinados e mantidos nos recantos seguros das suas entranhas, onde não podem ferir susceptibilidades. A referência, ainda que velada, dos pensamentos que cria poderá originar fortes cesuras por parte das gentes circundantes uma vez que, frequentemente, as pessoas comunicam sob um conjunto reduzido e formatado de códigos lacónicos, lugares comuns e clichés sociais, nos quais opiniões concretas, dissidentes e reveladoras de qualquer tipo de personalidade não padronizada se excluem. Os pensamentos do Monstro deverão, portanto, ser dissimulados, por forma a criar um espaço de integração social para o mesmo.

3. Diagnóstico e dissimulação - O Monstro deve encarar a sua condição, reconhecendo a sua diferença intrínseca como sintoma crónico de uma doença cuja cura se encontra, ainda, em fase de desenvolvimento. Não podendo recorrer ao sistema de saúde para, através dele, obter uma qualquer vacina milagrosa, deverá ingerir, através dos meios tradicionais - revistas, jornais, televisão, rádio e Internet - modelos que o ajudem a compreender a norma e a imitá-la. A utilização frequente destes meios poderá ser um incentivo à integração social do Monstro, uma vez que revela frequentemente as prioridades sociais e reduz em grande medida o pensamento crítico. Ao conhecer melhor a fracção reduzida de opiniões e temáticas sob debate, o Monstro poderá construir um conjunto de respostas-base que servirão nas suas conversas quotidianas, afastando-o da mal-afamada honestidade o que caracteriza. Os meios referidos poderão ainda exercer um forte papel no sentido de orientar o Monstro no que respeita ao seu posicionamento político e religioso, ajudando-o a integrar as comunidades maioritárias e a criar, desta forma, um sentido de pertença. É ainda de salientar que, embora alguns livros sejam também um bom meio de aprendizagem e tratamento, estes se tratam de instrumentos mais perigosos do que os media tradicionais, uma vez que, por vezes, os seus autores se integram, também, na categoria "Monstro", inscrevendo nas suas obras ideias inovadoras e/ou críticas que, pelo risco de criarem inteligência, conhecimento e/ou estruturas desafiadoras da manutenção dos padrões, são fortemente desaconselhadas.

4. Direitos e deveres - Tratando-se o Monstro de um ser desviante, este deverá compreender que a sua vivência será também modelada segundo um conjunto diferente de direitos e deveres. Aos deveres que comummente se atribuem às pessoas, o Monstro soma um conjunto de outras. Essas "outras", orientadas para o fingimento e a adaptação criarão ou não, as estruturas necessárias para que o Monstro seja também detentor de algum tipo de direitos. Os direitos do Monstro serão, portanto, proporcionais à sua capacidade de camuflagem social e ao grau de diferença que mantém.

5. Essência ou isolamento - O Monstro deverá compreender que, seguindo os passos do guia, poderá, com facilidade, esbater a diferença que o separa das pessoas. No entanto, sendo essencialmente e como a própria identificação refere, um Monstro, é provável que o individuo desviante sinta uma profunda necessidade de se manter igual a si mesmo, enfrentando a sua própria identidade no sentido de a sustentar. No caso de total incapacidade de camuflar a sua real personalidade, o Monstro deverá, portanto, remeter-se à sua insignificância e criar um canto de isolamento. Esse canto, muitas vezes designado como "o seu mundinho" ou "um planeta aparte" será o seu espaço seguro e o único no qual poderá sentir-se integrado mas, ocasionalmente, o Monstro poderá também optar por agarrar no papel e, como eu, fazer dele confidente, apenas para relembrar ao mundo exterior e cheio de personalidades uniformes e vazias que, embora ele seja um Monstro, são as pessoas que são ridículas.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet



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