Atentem, crianças. Está na hora de dormir. O que vem não é
para os vossos olhos. Passou a hora dos desenhos animados sobre o herói que
mata o vilão. E a hora das notícias. Já canta lá fora a coruja. Anuncia que vem
um filme depois. Mas não é para vós. Não. Agora, é hora das pessoas crescidas
tomarem o controlo da televisão. Que se faz tarde. O filme tem a rodinha
vermelha no canto. E fala de envolvimento. Tem cenas recheadas de pudor. Ide.
Ide dormir. Agora é só para maiores de 18.
Fica o silêncio. Enche-se de imagens. As imagens são o
silêncio. De olhos colados à tela onde se fala de paixão. E os corpos acabam
por se dar. Ocasionalmente despidos, em lençóis de linho. Há mãos a seguir as
linhas da anca, lábios beijando a curva do pescoço, unhas cravadas nas costas…
lascivo, devasso, sofregamente inadequado. Sussurros sobre amor eterno.
Ainda bem! Ainda bem que foram dormir. Sem ver. Sem ver
esses corpos nus a digladiarem-se no leito, na procura da plenitude dos
sentidos e dos sentimentos. Que vergonha. O amor não é para menores de 18.
Não! O amor não é como a guerra, que pode passar em horário
nobre e encher de imagens banalizadas o ecrã onde os avisos sobre a intensidade
do filme nada fazem senão de teaser para o que vem de seguida. Mas não faz mal.
A guerra. Que vejam a guerra. O mundo não é um mar de rosas. Convém que todos
saibam. Mesmo que o saibam com balas e poças de sangue no chão. Mesmo que o
saibam com crianças cobertas de cinza a fitar o céu de olhares perdidos e sem
luz. Mesmo que o saibam no cadáver ensanguentado do idoso morto à paulada por
ter passado na rua errada, à hora errada. É o mundo em que vivemos. Convém que
vejam. Em qualquer idade.
Mas o pivô despede-se. E leva a guerra consigo. E deixa o
relógio juntamente com a rodinha vermelha no canto superior esquerdo, para
ditar que não é hora de estarem acordados os mais jovens. Não convém que vejam. Podem fazer perguntas.
Causa desconforto explicar. Evite-se o desconforto de dizer que as pessoas se
partilham para dar de si e receber do outro. Amor. E que é assim que as pessoas
se fazem. Dando ao outro. É melhor que não haja explicações. Ide. Ide dormir,
antes que o amor preencha a tela. Lascivo e eminentemente perigoso.
As imagens saltam. Subitamente, misturam-se umas com as
outras. É a alça de cetim, que cai no braço. E a bala que voa e passa de
raspão. E o toque dos dedos, a arrepiar a pele. E o lábio passado na lâmina que
degola o inimigo e o deixa a esvair em sangue. E o grito de prazer. O grito de
dor. A intensidade. A devastação. Tudo somado, assemelhando-se ao toque de um
amante. Tudo somado, assemelhando-se ao arremessar de uma granada.
E as crianças vêem. Primeiro. E as crianças são mandadas
para a cama. De seguida. Para não verem o que vem depois de terem visto o que
já veio. E vão. Levam a guerra. E só. Porque lhes vedaram o amor.
É um universo construído pela atrocidade feita banal e a
partilha feita tabu. Queremos mais amor e menos guerra. Mas fazer guerra causa
menos embaraço do que fazer amor. E é por isso que mandamos as crianças para a
cama. A guerra é para todos. O amor é para maiores de 18.
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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