O mesmo corpo que levanto da cama, ela levanta do chão. E
avançamos as duas, sonolentas. O mesmo rosto, do qual lavo as remelas
amareladas do sono, ela lava para tentar esconder as horas por dormir. E os
passos que dou, nas meias quentes que a minha mãe me ofereceu, ela dá descalça,
sobre as pedras frias.
Eu não sei a sorte que tenho por ter quentura nos pés.
Ela acha que tem sorte porque ainda está viva.
Reclamo da fruta, demasiado madura, que me espera na
fruteira. E ela colhe o fruto, agradecendo à terra que lho dá, dividindo-o em
dois para que também o filho coma. E vamos as duas, debaixo do mesmo sol.
Envolvem-me os braços do meu amor. Do meu amante. Carinhosos
e cheios de promessas, fazendo do meu corpo templo, que se honra com sedução e
ternura. O meu corpo branco e esguio. E lançam-na contra o chão, de novo, os
braços rudes e violentos dele. Que a massacra e a desonra, violentando-lhe a
carne. Entrando-lhe na carne. Exigindo-lhe da carne o fruto que ela não quer e
a força que ela não tem. No corpo negro e subnutrido. Fitando o teto, com olhos
laços e vazios. Ela entoa uma canção. Calada. Para dentro. E reza pelo que vem
depois. Seja o que for.
Eu não sei a sorte que tenho por ter o amor de alguém.
Ela acha que tem sorte porque ainda está viva.
Passo nas mãos o unguento aveludado, de aroma a framboesa,
para as hidratar. Julgo-as desengraçadas e secas. E sinto o calor da mão que se
dá a essa a outra, menos feia. Ela agarra nas enxadas e vai. Tem calos nas mãos
que dá ao martírio. E agradece por tê-las. As mãos.
Também agradece por ter pés, enquanto eu calço os sapatos de
salto e reclamo por tê-los. E agradece por ter comida, enquanto eu reclamo do
número de calorias que me enchem o prato guloso.
Andamos sob o mesmo sol. E sobre a mesma terra. Eu reclamo
que não me entendem. Ela não sabe que não a entendem. Na maioria dos dias, ela
pouco conhece além do dia que lhe nasce e da noite que a leva até ao dia que
vem a seguir.
Eu não sei a sorte que tenho por andar sobre esta terra.
Ela acha que tem sorte porque ainda está viva.
Somos iguais. Gostamos de dizer. Que o somos. Iguais.
Podemos perder o nosso tempo a dizê-lo. Porque faz parte do privilégio falar.
Para dizer. Que somos. Iguais.
Ela não sabe se somos iguais. E eu só finjo que sei. Tento
convencer-me de que o sei. Como se soubesse. Como se fosse verdade. Mas só
porque quando traçaram a linha, eu fiquei a norte.
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