“Uma árvore, desde que localizada a uma distância entre copas de quatro metros de outras árvores (…), pode ser mantida.”
- Ana Fernandes, Jornal Público
(sobre a lei para limpeza de matas de 2018)
Hoje, a chuva que cai, magoa. E o sol que brilha não me aquece.
Hoje, eu sou mais sombrio que a minha sombra. E ela? Ela permanece. No chão.
Inerte. Ao lado desta sombra que espalho e odeio. E ninguém me pergunte porquê.
Sinto seiva nas veias de mim, a correr livre. E o vento a
soprar levemente, passa-me por entre os dedos. E continuo de dedos erguidos ao
céu. Pergunto eu porquê. Não quero saber a resposta. Sei a resposta. Tudo ao
mesmo tempo.
É fácil dizer que amamos alguém quando esse alguém já não
está. Mas o meu amor, este amor que honrei por séculos, não é um amor que se
explique com os traços da morte. Ao lado deste meu amor, eu lutei contra o fogo
e contra a água. Suportei as maiores tempestades. E todas as pestilentas
infestações. E todas as secas. Ao lado deste meu amor, eu suportei os cunhos da
igualdade e os da diferença. O meu amor sobreviveu a tudo. E era para ser
eterno. Milenar, no mínimo. Até vir a provação que sempre nos condena. Aquela
que nos abate. Aquela que nos sufoca. Aquela que nos afasta. E se ri depois.
Mas a minha história não começa no final. A minha história
começa há muitos anos atrás. Séculos. No tempo em que eu não passava de semente
e ela também. Lançadas, ao acaso sobre a terra, deixadas para apodrecer ou
vingar, consoante a vontade dos Deuses. Caímos lado a lado. E não o soubemos.
Até pormos um olho fora da terra e sacudirmos os seus grãos das nossas cabeças.
E, quando o fizemos. Como explicar? Havia flores e nuvens brancas a sarapintar
um céu azul. E havia um rio a correr perto. E havia pontos mágicos de poeira
dourada no ar. Mas não vimos nada disto. O que vimos, de imediato, foi o toque,
meio verde, meio envergonhado, um do outro. Senti que a seiva me ardia e podia
ter dado um pulo logo ali. Mas não. Éramos apenas brotos. Ainda tão verdes.
Ainda tão pequeninos. Olhámos um para o outro. Fizemos uma espécie de saudação,
promovida pela aragem. E soubemos, sem palavras, que havíamos de estar sempre
lado a lado.
Fomos crescendo juntos. Às vezes, ela acordava depois de
mim. E eu olhava para ela. Primeiro moça, de tronco estreito e folha parca; mas
imponente quando os anos de donzela deram lugar à firmeza de raízes fundas, de
um peito cheio, de um espreguiçar constante na direção do céu. Um dia, ousadia
minha, espreguicei-me também. As nossas mãos tocaram-se. Achei que era um
instante. Mas ela enlaçou-se em mim. E, de ramos enlaçados, num abraço de
madeira e verde, unimo-nos assim. E eu disse “para sempre”. E ela repetiu “para
sempre". E o amor tomou forma. Os anjos honraram este amor. Na união das nossas
mãos, fizeram ninho. E todos os anos nasciam novos anos, que ora piavam, ora
comiam das bocas das mães, ora tentavam voar cedo demais.
Ela emocionava-se com os pássaros. Os seus eternos anjos.
Contava-lhes histórias sobre as criaturas que lhes serviam de alimento e da
forma como, junto aos seus pés, tantas rastejavam. Estas histórias ajudavam a
manter os pequenotes no ninho e impedia-os de tentarem voar antes dos ossos se
rechearem de ar e as asas de penas. E quando a mãe anjo voltava, agradecia. E
ela ria. Estendia sempre mais as suas folhas para proteger do calor a penugem
das pequenas crias. Era, também ela, mãe daqueles anjos. E eu aprendi a ser pai
deles, apenas porque a amava.
Um esquilo, roubava-me ocasionalmente uma bolota. E corria
para os braços dela. De cabelo puxado, resmungão, eu atirava palavrões e
ameaças. Era ela que defendia o pequeno, dando-lhe abrigo num buraquinho do seu
peito. “Vá lá, tens tantas, não sejas invejoso!”. Sim. Eu amava-a. E era, em
parte, porque ela me ensinava a amar, não só o seu semblante, mas também os pássaros,
e os esquilos ladrões, e o sol e as estrelas.
Vieram tempestades. E incêndios. De mãos dadas, aceitámos
que morreríamos juntos. “É desta, meu amor.”, dizia-lhe eu. E ela respondia.
“Agarra-me só a mão. Vai ficar tudo bem.”. E a tempestade parava. E o incêndio
era apagado. Deixavam à nossa volta, com frequência, um rasto de destruição
negra. Mas poupava-nos. Porque darmos as mãos era um segredo com milénios, que
tornava mágica a partilha da seiva. E nos permitia continuar a dar abrigo aos
anjos e aos esquilos do mundo.
Até ontem, essa magia
bastou. Para podermos amar-nos. Durante séculos e até ontem, foi suficiente.
Mas ontem, vieram os homens. E as suas serras. E as suas carrinhas. E as suas
palavras. Assustaram os pássaros e os esquilos à chegada. Assustaram-nos a nós
também. Mas, de raízes postas na terra, a fuga não é possível. E eu senti.
Disse-lhe. “É desta, meu amor”. E ela respondeu. “Agarra-me só a mão. Vai ficar
tudo bem.”. Mas fechou os olhos.
Um dos homens disse. “Olha estas.”. E o outro respondeu:
“quatro metros de copa a copa, mas basta uma!”. E o primeiro respondeu, “deixa
o carvalho, então, os pinheiros dão mais problemas”. Ela entoou um cântico
antigo, até cair. Deixou que a mão deslizasse da minha com suavidade, deixando
para trás algumas folhas secas. Tombou. E eu quis fechar os olhos para não ver
cada instante da sua tortura. Mas não consegui.
Deixaram-na ali. Aos meus pés. Cortaram-na em pedaços. E
deixaram-na. Aos meus pés. O amor da minha vida. Aos meus pés. E, agora, quem
vai proteger os esquilos? E, agora, quem vai contar histórias aos pardais? E,
agora, quem vai dar-me a mão?
Ao lado deste meu amor, eu lutei contra o fogo e contra a
água. Suportei as maiores tempestades. E todas as pestilentas infestações. E
todas as secas. Ao lado deste meu amor, eu suportei os cunhos da igualdade e os
da diferença. O meu amor sobreviveu a tudo. E era para ser eterno. Mas, hoje, a
chuva que cai, magoa. E o sol que brilha não aquece. Hoje, eu sou mais sombrio
que a minha sombra. E ela? Ela permanece. No chão. Inerte. Ao lado desta sombra
que espalho e odeio. Porque a amo. E ela não está. E a razão pela qual não está
é porque ousámos dar a mão… e não havia espaços abertos entre nós.
*Imagem retirada da Internet
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Adorei, adorei e adorei! :)
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