quinta-feira, 24 de maio de 2018

De copa a copa




“Uma árvore, desde que localizada a uma distância entre copas de quatro metros de outras árvores (…), pode ser mantida.”

- Ana Fernandes, Jornal Público
(sobre a lei para limpeza de matas de 2018)



Hoje, a chuva que cai, magoa. E o sol que brilha não me aquece. Hoje, eu sou mais sombrio que a minha sombra. E ela? Ela permanece. No chão. Inerte. Ao lado desta sombra que espalho e odeio. E ninguém me pergunte porquê.
Sinto seiva nas veias de mim, a correr livre. E o vento a soprar levemente, passa-me por entre os dedos. E continuo de dedos erguidos ao céu. Pergunto eu porquê. Não quero saber a resposta. Sei a resposta. Tudo ao mesmo tempo.
É fácil dizer que amamos alguém quando esse alguém já não está. Mas o meu amor, este amor que honrei por séculos, não é um amor que se explique com os traços da morte. Ao lado deste meu amor, eu lutei contra o fogo e contra a água. Suportei as maiores tempestades. E todas as pestilentas infestações. E todas as secas. Ao lado deste meu amor, eu suportei os cunhos da igualdade e os da diferença. O meu amor sobreviveu a tudo. E era para ser eterno. Milenar, no mínimo. Até vir a provação que sempre nos condena. Aquela que nos abate. Aquela que nos sufoca. Aquela que nos afasta. E se ri depois.
Mas a minha história não começa no final. A minha história começa há muitos anos atrás. Séculos. No tempo em que eu não passava de semente e ela também. Lançadas, ao acaso sobre a terra, deixadas para apodrecer ou vingar, consoante a vontade dos Deuses. Caímos lado a lado. E não o soubemos. Até pormos um olho fora da terra e sacudirmos os seus grãos das nossas cabeças. E, quando o fizemos. Como explicar? Havia flores e nuvens brancas a sarapintar um céu azul. E havia um rio a correr perto. E havia pontos mágicos de poeira dourada no ar. Mas não vimos nada disto. O que vimos, de imediato, foi o toque, meio verde, meio envergonhado, um do outro. Senti que a seiva me ardia e podia ter dado um pulo logo ali. Mas não. Éramos apenas brotos. Ainda tão verdes. Ainda tão pequeninos. Olhámos um para o outro. Fizemos uma espécie de saudação, promovida pela aragem. E soubemos, sem palavras, que havíamos de estar sempre lado a lado.
Fomos crescendo juntos. Às vezes, ela acordava depois de mim. E eu olhava para ela. Primeiro moça, de tronco estreito e folha parca; mas imponente quando os anos de donzela deram lugar à firmeza de raízes fundas, de um peito cheio, de um espreguiçar constante na direção do céu. Um dia, ousadia minha, espreguicei-me também. As nossas mãos tocaram-se. Achei que era um instante. Mas ela enlaçou-se em mim. E, de ramos enlaçados, num abraço de madeira e verde, unimo-nos assim. E eu disse “para sempre”. E ela repetiu “para sempre". E o amor tomou forma. Os anjos honraram este amor. Na união das nossas mãos, fizeram ninho. E todos os anos nasciam novos anos, que ora piavam, ora comiam das bocas das mães, ora tentavam voar cedo demais.
Ela emocionava-se com os pássaros. Os seus eternos anjos. Contava-lhes histórias sobre as criaturas que lhes serviam de alimento e da forma como, junto aos seus pés, tantas rastejavam. Estas histórias ajudavam a manter os pequenotes no ninho e impedia-os de tentarem voar antes dos ossos se rechearem de ar e as asas de penas. E quando a mãe anjo voltava, agradecia. E ela ria. Estendia sempre mais as suas folhas para proteger do calor a penugem das pequenas crias. Era, também ela, mãe daqueles anjos. E eu aprendi a ser pai deles, apenas porque a amava.
Um esquilo, roubava-me ocasionalmente uma bolota. E corria para os braços dela. De cabelo puxado, resmungão, eu atirava palavrões e ameaças. Era ela que defendia o pequeno, dando-lhe abrigo num buraquinho do seu peito. “Vá lá, tens tantas, não sejas invejoso!”. Sim. Eu amava-a. E era, em parte, porque ela me ensinava a amar, não só o seu semblante, mas também os pássaros, e os esquilos ladrões, e o sol e as estrelas.
Vieram tempestades. E incêndios. De mãos dadas, aceitámos que morreríamos juntos. “É desta, meu amor.”, dizia-lhe eu. E ela respondia. “Agarra-me só a mão. Vai ficar tudo bem.”. E a tempestade parava. E o incêndio era apagado. Deixavam à nossa volta, com frequência, um rasto de destruição negra. Mas poupava-nos. Porque darmos as mãos era um segredo com milénios, que tornava mágica a partilha da seiva. E nos permitia continuar a dar abrigo aos anjos e aos esquilos do mundo.
 Até ontem, essa magia bastou. Para podermos amar-nos. Durante séculos e até ontem, foi suficiente. Mas ontem, vieram os homens. E as suas serras. E as suas carrinhas. E as suas palavras. Assustaram os pássaros e os esquilos à chegada. Assustaram-nos a nós também. Mas, de raízes postas na terra, a fuga não é possível. E eu senti. Disse-lhe. “É desta, meu amor”. E ela respondeu. “Agarra-me só a mão. Vai ficar tudo bem.”. Mas fechou os olhos.
Um dos homens disse. “Olha estas.”. E o outro respondeu: “quatro metros de copa a copa, mas basta uma!”. E o primeiro respondeu, “deixa o carvalho, então, os pinheiros dão mais problemas”. Ela entoou um cântico antigo, até cair. Deixou que a mão deslizasse da minha com suavidade, deixando para trás algumas folhas secas. Tombou. E eu quis fechar os olhos para não ver cada instante da sua tortura. Mas não consegui.
Deixaram-na ali. Aos meus pés. Cortaram-na em pedaços. E deixaram-na. Aos meus pés. O amor da minha vida. Aos meus pés. E, agora, quem vai proteger os esquilos? E, agora, quem vai contar histórias aos pardais? E, agora, quem vai dar-me a mão?
Ao lado deste meu amor, eu lutei contra o fogo e contra a água. Suportei as maiores tempestades. E todas as pestilentas infestações. E todas as secas. Ao lado deste meu amor, eu suportei os cunhos da igualdade e os da diferença. O meu amor sobreviveu a tudo. E era para ser eterno. Mas, hoje, a chuva que cai, magoa. E o sol que brilha não aquece. Hoje, eu sou mais sombrio que a minha sombra. E ela? Ela permanece. No chão. Inerte. Ao lado desta sombra que espalho e odeio. Porque a amo. E ela não está. E a razão pela qual não está é porque ousámos dar a mão… e não havia espaços abertos entre nós.




*Imagem retirada da Internet


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