Há uma parte dele que tu nunca vais ter. Por mais
que queiras. Por mais que faças. Ainda que te quebres em dois, na ânsia
desenfreada pela plenitude dos sentidos. Há uma parte dele que tu nunca vais
ter.
Hás-de dar por ela ao longo do dia. Quando acordares
para o olhar disperso, em busca do aroma a café e lhe notares, na sonolência
dos passos, a inquietude da madrugada incerta e cheia de nuvens.
Vai ser muito subtil. Um sorriso que se atrasa por
segundos. Um toque que se afasta antes de o ser. O ouvido atento, aguardando
por fantasmas de anteontem. Tão subtil será que talvez não percebas ao
acordar. Mas há uma parte dele que tu nunca vais ter.
Avançará pelo dia. No almoço, em mesa posta a
preceito. Ou no restaurante, entre fatias de piza e sabores orientais. A
procura da familiaridade entre as palavras que se repetem, enquanto escolhes. E
o afastar do pensamento dos pimentos removidos e do picante, médio ou intenso.
Ficará nos trejeitos da voz, num pedido que soa sempre a pergunta. Como quem
não entende. Como quem não sabe. Mas sabendo.
As mãos no volante, a caminho de casa, irão, por
vezes, à maneta das mudanças. Mesmo de sexta metida e a 120 quilómetros por
hora. Não procurarão, nem a tua, nem a redução rotativa. Ele estará apenas ali.
À distância de um toque. E a 10 mil anos-luz. Agarrando a memória do riso. E da
viagem. Mas mais do riso, preso na maneta das mudanças. E, aí, talvez comeces a
desconfiar. Há uma parte dele que tu nunca vais ter.
Na manta – ou cobertor – sobre o sofá manchado.
Ecoando no papel de parede mal amanhado e cheio de altinhos. Na motivação dos
dedos sobre as teclas gastas de jogos intermináveis e na rapidez da paragem no
permeio da história que te habituaste a ver de corrida. Hábitos inusuais de
outras atmosferas. Silêncios cheios de palavras que se perdem. E documentos de
identificação que pouco primam pela seriedade e bons costumes sociais.
Estranheza que, de entranhada, passa de feitio a defeito, qual pedaço
desabotoado de um pano de linho puro.
Estranharás. A quebra – primeiro diferente e
depois horrífica – de um sonho que, afinal, era só isso. Pela certeza do amor,
começarás, aos poucos, a sentir a falta. E a falta é como um aroma leve mas
pútrido de uma certeza. A de que existe uma parte dele que tu nunca vais ter.
Será no toque. Na permissividade do toque. Na
plenitude do toque - por vezes agreste na intensidade e nos jeitos.
Desconfortável no seu conjunto, pelo inusitado da temporalidade que o molda.
Uma ausência de regras que se faz regra. Ou o medo de errar, exposto em
questões dúbias que se ancorarão numa só. Sabes que há uma parte dele que tu
nunca vais ter?
Acabará em noites na cama. Na espera pela tua
última excursão – que, provavelmente, não terá lugar - ou pela procura do teu
corpo, voltado para o infinito, para te agarrar pela cintura e te prender à
terra dos homens, com medo de que voes e não voltes mais. Como não podes ir lá
– ao mundo do voo – não compreenderás a urgência das mãos ou da distância
depois do toque. E vais saber então, se não o descobriste ainda – que há uma
parte dele que tu nunca vais ter.
Perdoa. Perdoa essa falta de entrega, quase
ínfima, que impede que o tudo seja um todo. Ele quererá, por certo, dar-te tudo
o que é. Entende. Eu passei. Passei como só passa quem fica. E a parte dele que
tu nunca vais ter, sou eu.
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