terça-feira, 16 de abril de 2019

Palavras que ofendem

Street Artist: FRAc // Fotografia de: Ricardo Barriga


Não é necessariamente verdade que eu não tenha medo das palavras ou que elas não me ofendam.

Simplesmente, palavras como merda, foda-se e caralho não me ofendem. Já palavras como violência, dor, fome, sede, pobreza… essas ofendem-me. Porquê? Porque eu entendo a necessidade de um foda-se quando se bate com o mindinho na esquina de um móvel. E entendo a necessidade do caralho quando alguém está a ser chato. E entendo a necessidade da merda que, além de necessidade fisiológica, é ainda um forte argumento social de uso bambamente colocado no aceitável.

O que eu não entendo é como é que ainda morrem mulheres às mãos dos maridos. O que não entendo é como é que existem pessoas a morrer de sede, quando eu tomo banho com água potável. O que eu não entendo é como nos banqueteamos sem pensamento pesado na fome alheia. O que eu não entendo é como alguns dormem à noite, depois de roubarem até as estrelas a quem já não tem teto.

Eu ofendo-me com palavras, como toda a gente! Mas não com as asneiras mais ou menos fortes. Essas são as palavras com as quais convivo pacatamente. Sem medo delas nem do seu uso. Nem dos preconceitos e normas sociais que as exilam. Mas ofende-me. Ofende-me a palavra purismo disfarçada de pudor. Ofende-me a palavra ignorância disfarçada de educação. Ofende-me globalmente a falsidade. E ofendem-me pessoas de palavras caras e sem impropérios a gritar a plenos pulmões ideologias vagas e vazias que deixam milhares de milhão na merda com os seus palavrões na ponta da língua. Não têm dicionários melhores nem vida que lhes permita expressões mais suaves. O mundo roubou-lhes até as palavras.

Não me ofendem as asneiras. Ofende-me o universo rico - literalmente rico - de palavras como corrupção, ganância, ostentação e crueldade. Ofende-me porque cria fissuras em peito de gente que, como eu, dentro de si, tem mais do que carne e osso. E por isso sofre e padece e morre.

Também não tenho medo da morte. Desculpem. Eu sei que devia ser feita da mesma matéria que edifica exércitos consonantes de pessoas programadas para anuir como os cachorrinhos de brincar das bagageiras dos automóveis. Mas eu não sou os outros. Já dizia a minha mãe. Tu não és os outros. E não.

Talvez por isso, tal como não me ofendem os impropérios, também não tenho medo da morte. Depois de tudo o que a sociedade edificou, na sua visão puritana, proibindo sexo e asneiras e outra centena de coisas inofensivas; depois de tanta violência fortuita e de tantas histórias mal contadas onde são sempre os mesmos que perdem os direitos; depois de tudo, parece-me que a morte é só uma espécie de poema romântico, cantado na voz de um Deus que a sociedade não honra porque não conhece. E não tenho medo dela, nem sinto que me ofenda. Pelo contrário, sinto que me entende.

As pessoas lutam contra as palavras porque é fácil. As palavras não ripostam. Pô-las de lado, condená-las à difamação, proibi-las, censurá-las, pisá-las e mal tratá-las não fará com que elas se revoltem e nos ataquem também. As pessoas lutam contra as palavras porque é fácil. Mas contra as palavras erradas. Porque, se fosse contra as certas, havia de se pisar calos de gente, de se derrubar pedestais, de se realinhar as lógicas do mundo. E as pessoas, que já têm tanto medo das palavras, têm ainda mais medo dessas pessoas que sobem aos pedestais e pregam sabedorias de cloaca.

Não é necessariamente verdade que eu não tenha medo das palavras ou que elas não me ofendam. Mas não me ofendem os impropérios. Ofendem-me palavras que ferem na carne. E palavras que moem a alma.

Sofro mais às mãos de quem sorri e fala caro em época de campanha eleitoral do com a gente que me manda para o outro lado com recurso às “palavras proibidas”. Então, não é porque eu não tenha medo das palavras ou porque elas não me ofendam; é porque compreendo mais e melhor que as palavras são o fruto e o problema reside na raiz. Há palavras caras que nos destroem. E só se dizem porque o fertilizante que se usa é justamente a merda que a sociedade faz e continua a fazer, calando o que deve ser dito e dizendo só o que é politicamente correto.




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