terça-feira, 30 de julho de 2024

Sobre a educação

 

Foto da performance "A Fada Desastrada"

Eu sei que pode ser otimismo exacerbado. Mas eu ainda acredito que é possível aprender...

 

Algumas crianças não são fáceis. São inocentes. Acreditam em mundos além do mundo. São insistentes. Fazem perguntas intermináveis. Exploram a paciência de quem as rodeia com as suas vontades, as suas manias, as suas teorias insensatas sobre as coisas.

 

Algumas crianças não distinguem uma pessoa da outra. Confiam. Colocam-se em risco pela confiança. Outras, escondem-se atrás da primeira entidade ou objeto, quando sentem a primeira centelha de perigo. Para compensar, correm como se não pudessem cair. E caem. Magoam-se. Choram. Fazem ocasionais birras porque querem algo que está fora do alcance. E depois tentam outra vez. Batem com a cabeça na esquina do móvel. Voltam a chorar. E repetem a seguir.

 

Algumas crianças gostam mais de olhar pela janela para ver os pássaros e a neve, do que de enfiar as cabeças nos livros de ciências que lhes falam dos pássaros e da neve. Algumas pintam nas paredes, sem o mínimo de respeito pelos custos de uma pintura interior. Algumas cantam alto durante as viagens. E perguntam se falta muito para chegar. Ficam entusiasmadas com a ideia de chegar.

 

Algumas crianças largam a mão para correr, mesmo depois de lhes terem dito para não largarem a mão e não correrem. Saem dos quartos, mesmo quando estão de castigo. Fazem o que querem e lhes apetece. Algumas crianças vão fazer asneiras e pedir desculpa a seguir. Vinte vezes consecutivas. A mesma asneira. O mesmo pedido de desculpas.

 

Eu sei que pode ser otimismo exacerbado. Mas eu ainda acredito que é possível... tem de ser... Com o esforço, empenho e dedicação certos, eu acredito que é possível - para qualquer adulto - aprender com elas...

  Marina Ferraz




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terça-feira, 23 de julho de 2024

Modo de baixo consumo

 

Imagem retirada da web | Pixabay

Eu e o meu computador temos um ritual. Uma luta inglória. Uma espécie de discussão entre homem e máquina, em que inevitavelmente perco. Vencida, mas não convencida, lá acabo por me levantar. É difícil levantar, às vezes.

 

 

Esta história começa nos 20% de bateria. A tela iluminada perde parte substancial da sua luminosidade. O pop-up pula para o meio do ecrã. Explica - como se eu não tivesse percebido - que está em modo de poupança de bateria. Digo-lhe que também estou, como se isto fosse uma conversa num grupo de apoio. Uma demonstração de empatia ou de falta dela. Aquele típico não és só tu que tens problemas.

 

Só que, ao contrário de mim que sou independentemente problemática, o computador lembra-me de que se baseia em modelos numéricos com frequência. E, como a Matemática, fica à espera que eu lhe resolva o problema. Quer comer. Quer ter energia. Não se cansa de me dizer que devia ligar o computador à corrente. Insiste tanto que, por vezes, pensando que deixei o cabo na mochila, na entrada, lhe digo: Aguenta-te! O cabo está na China... se eu for buscar o cabo, é para te enforcar com ele!

 

Sim. Poderia dizer-se que temos problemas quando começamos a falar com o nosso computador. Mas é um problema maior ainda quando ele começa a responder. Quando damos conta, as redes sociais estão repletas de anúncios de cabos e cordas e viagens para Pequim. Um olhar em redor, para tentar encontrar a escuta. A minha carreira na política - que ainda nem começou – não pode ser, deste modo, precocemente destruída com gravações indevidas!

 

Tento continuar a trabalhar. Ou a procurar alternativas. Ou a ver qual foi a conta que chegou esta semana por parte das Finanças ou da Segurança Social e exatamente quão na merda vou ficar quando as pagar, e à renda, e aos serviços. Logo o computador me placa, numa luta corpo a corpo, lançando um novo pop-up. 10% de bateria. Para continuar, ligue o seu dispositivo à corrente. Como quem diz, paga a conta da Luz ou nem terás meios de verificar exatamente quão fodida estás por causa do capitalismo.

 

Dos 10% aos 5% de bateria, eu e o meu computador vivemos um momento à Velho Oeste, com banda sonora dramática e tudo. Discutimos sobre quem tem menos energia. E, mesmo continuando a achar que sou eu, lá acabo por me levantar.

 

É difícil levantar, às vezes. Digo-lhe. Sou portuguesa. Hoje em dia, para me levantar, não é só do sofá, é do fundo do poço...

 

Enquanto o ecrã retoma o brilho e o queixume dele se dissolve, penso que, já que estou levantada, poderá ser um bom momento para fugir, pegar em todo o dinheiro que sobra destes pagamentos e simplesmente sair em viagem até que ele acabe.

 

Penso que seja suficiente para ir até à Amadora, se voltar de boleia.

 

 Marina Ferraz




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terça-feira, 16 de julho de 2024

Notas de viagem

 


Querem que eu saia de casa como as borboletas saem dos casulos. Naturalmente e sem fazer alarde. Aguardando que o céu traga novas aventuras. Aventuras frugais. Querem que o meu ir seja um ir como os outros vão. Trazendo para contar aquela história engraçada e os relatos das paisagens, dos monumentos, da multiculturalidade e do exótico.

 

E eu continuo a voltar para o casulo. Parece que há vontade inerente de ser a lagarta de asas comprimidas. Talvez seja cultural. Um conforto português. Esse. De viver com as asas comprimidas...

 

Só que, a cada viagem, acontece o mesmo. Não caibo no casulo de onde saí. Já não caibo nesse casulo há muito tempo. E esteve tudo bem enquanto ficava uma perna de fora. Ou um pé. Ou o nariz. Só que a mão e a boca são muitas vezes soberanas nessa arte de ficarem desalojadas... traço também luso, este de longa tradição. Não sei muito bem como não criticar o meu país. E não sei parar de amá-lo, ainda que a relação seja claramente tóxica.

 

 

Não tenho aquela história engraçada. Os relatos das paisagens, dos monumentos, da multiculturalidade e do exótico. Ou tenho. Na verdade tenho. Só não tenho vontade de falar sobre eles.

 

 

Apetece-me falar sobre os transportes públicos gratuitos. Sobre o respeito pela Natureza. Sobre os festivais em prol da inclusão. Sobre a bandeira LGBTQIA+ hasteada à frente de um dos principais monumentos da cidade. Sobre a ligeireza das pessoas.

 

 

Não me fica a vontade de ficar noutro canto do mundo, mas a vontade de mudar o meu canto. A utópica vontade de mudar o meu canto. Esse onde o único transporte gratuito é o que leva as pessoas para a miséria e o inferno dos dias. Onde se arrancam e cortam e queimam as árvores. Onde se atacam estrangeiros. Onde se discutem os danos que tem iluminar o parlamento com as cores do arco-íris. Onde as pessoas caminham encurvadas, soturnas, tantas vezes com o peso do mundo. Fico com vontade de mudar o meu canto. E o meu casulo fica mais pequeno. Mais desconfortável. Se já era miúdo para mim, imaginem para mim e a utopia...

 

 

 

Então busco a compensação. Relatos. Aquela história engraçada. Vem à memória a prova de vinhos da Geórgia. Valha-nos a abençoada prova de vinhos. É preciso que a haja, para recordar Amália. Dar de beber à dor. Encontrar a forma cordial de dizer “nah...”.E lembrar a opinião realista, sorrida, no verter do copo: eu sou portuguesa, temos muito bom vinho.

 

 

Temos. Temos bom vinho. E pouca vontade estar sóbrios perante a dificuldade permanente.

Raios, lá vou eu outra vez...

 

 

 

Continuo a voltar para o casulo. Esse, no qual não caibo. Continuo a amar o meu canto. Esse onde as condições escasseiam. Ainda quero (estar com) o meu país. Mas a cada voo, eu sei – e não posso des-saber – esta é uma relação tóxica. E talvez morra disto... cedo. Como as borboletas depois de saírem dos casulos.


Marina Ferraz




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terça-feira, 9 de julho de 2024

O fruto

 

Imagem gerada por I.A.

O fruto que nasceu na árvore do mundo foi o mais doce desde há muitos verões. Por isso, cortei-o em gomos muito finos e dei um pedacinho dele a cada pessoa. Toda a gente sorriu. Havia sete mil milhões de pessoas a sorrir. Subitamente, ninguém sentia fome. Todas as doenças sararam. Ninguém sentia frio. Ninguém tinha vontade de fazer a guerra. De lutar na guerra. De fugir da guerra. De lembrar a guerra. A rua era morna. As portas das casas estavam destrancadas. Quartos que há muito serviam de arrecadação foram arrumados e deram espaço aos sem-abrigo. E as pessoas apanhavam outros frutos e distribuíam os gomos umas pelas outras. Quem não tinha fruto, dava pão. Quem não tinha pão, dava poema. Quem não tinha poema, dava canção. Ou peça. Ou auxílio. Ou conforto. Ou cobertor.

 

 

A menina olhou para mim, enquanto eu contava esta história. E disse-me: "Oh, mas esse mundo não existe."

 

E eu disse-lhe. "Tudo o que se diz existe. Tudo o que se escreve existe."

 

- Até as fadas e os unicórnios?

 

- Até as fadas e os unicórnios... Até os frutos mágicos...

 

Ela sorriu, fechando os olhos.

 

E é por isso, acrescentei, sem que me ouvisse, que a primeira coisa que os ditadores nos roubam é a esperança e a liberdade de expressão.

 

 

Trinquei o fruto da fruteira. Não tinha sabor. E o telejornal falou da doença e da fome. Dos desalojados e dos mortos de guerra. Da escassez e da ganância. Tranquei a porta antes de me deitar.

 

Tudo o que se diz existe. Tudo o que se escreve existe.

 

Quero o mundo das minhas histórias. Estou farta deste!


Marina Ferraz




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quarta-feira, 3 de julho de 2024

Duas toneladas e meia (de saudade)

 



Para Maria Graciosa Cunha de Almeida


Dizias sempre que eu levava muito peso. Que eras um peso. Ainda te lembras?

 

Deixava-te ficar mesmo na orla da praia. Espera por mim, um bocadinho. E lá voltava para trás, pela estrada de areia prensada, à procura de um lugar para o carro.

 

A Praia de São Julião era uma das tuas favoritas. Até te apaixonares, como eu, pela Adraga. Não importava se era numa ou na outra... Deixava-te lá. Mesmo pertinho da areia. E ia estacionar. E voltava. Carregando o chapéu de sol, a tua cadeira de praia, as duas toalhas, o saco com a merenda e os protetores solares. Um livro – quantas vezes de poesia, para ler para ti? – e mais o que fosse preciso.

 

Alcançava-te. Sorrias-me, ao veres-me chegar, como se não me visses há muito tempo. E eu sabia que tinham sido apenas alguns minutos. Mas olhavas-me assim. Com esses olhos pequeninos e escuros, atrás das lentes grossas dos óculos amarelados. E eu sorria de volta, sentindo-me o centro do mundo.

 

Colocava o peso inteiro num dos braços e dava-te o outro. Agarravas-mo. Mas fazias isto sempre com a mesma relutância. Dizias que eu levava muito peso. Que eras um peso. E eu assegurava-te de que estava bem. Porque estava. E que não pesava assim tanto. Era mentira.

 

A verdade era outra: tudo aquilo pesava duas toneladas e meia. E, mesmo assim, eu seguia a pensar que me tinha esquecido de alguma coisa de que podias precisar. Os teus passos eram lentos e morosos. Pesavam-me mais no braço quando deixávamos o passadiço e palmilhávamos a areia. A verdade era esta: tudo aquilo poderia pesar o dobro e eu ainda o faria com o mesmo amor. O peso era leve, porque era teu, por ti... e eu amava ver o teu sorriso na contemplação da praia, do mar, das arribas. E eu amava a tua voz, dizendo: já não pensei que visse isto. E eu amava pousar a cabeça no teu colo morno do sol, sentir o carinho dos teus dedos entre os fios desgrenhados do meu cabelo. Sentir esse amor incondicional.

 

 

Atravessar a praia pesa-me mais sem ti. Às vezes, quando piso a areia. De carteira no ombro e telemóvel no bolso, sinto falta de todas as trouxas e do peso quente do teu corpo. Gostava de ainda ter de carregar, pela areia, essa carga que me deixava as pegadas fundas, ao lado das tuas.

Mas o peso esvaece. Mesmo hoje.

 

 

Sabes? Às vezes, olho para o lado, à procura das tuas pegadas. Não as vejo. E lembro a parábola triste do descrente. Como não sou católica, não pergunto porque me abandonaste. Agradeço simplesmente, porque sei... Agora és tu que me levas ao colo.

 

Sinto-me leve. Como me sentia quando ancoravas o corpo no meu corpo carregado de tralha. E avançávamos juntas pela areia de toda a nossa cumplicidade.


 Marina Ferraz


WORKSHOP & CAMINHADA

POESIA NA(O) MATA

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